sábado, 10 de agosto de 2024

Cantiga quase de roda

Na roda do mundo
lá vai o menino.
O mundo é tão grande
e os homens tão sós.
De pena, o menino
começa a cantar.
(Cantigas afastam
as coisas escuras.)
Mãos dadas aos homens,
lá vai o menino,
na roda da vida
rodando e cantando.
A seu lado, há muitos
que cantam também:
cantigas de escárnio
e de maldizer.
Mas como ele sabe
que os homens, embora
se façam de fortes,
se façam de grandes,
no fundo carecem
de aurora e de infância
então ele canta
cantigas de roda
e às vezes inventa
algumas – mas sempre
de amor ou de amigo.

Cantigas que tornem
a vida mais doce
e mais brando o peso
das sombras que o tempo
derrama, derrama
na fronte dos homens.
Na roda do mundo
lá vai o menino,
rodando e cantando
seu canto de infância.

Pois sabe que os homens
embora se façam
de graves, de fortes,
no fundo carecem
de claras cantigas
senão ficam ocos,
senão endoidecem.

Então ele segue
cantando de bosques,
de rosas e de anjos,
de anéis e cirandas,
de nuvens e pássaros,
de sanchas senhoras
cobertas de prata,
de barcas celestes
caídas no mar.

Na roda do mundo,
mãos dadas aos homens,
lá vai o menino
rodando e cantando
cantigas que façam
a vida mais doce
cantigas que façam
os homens mais crianças.

EPITÁFIO

O canto desse menino
talvez tenha sido em vão.
Mas ele fez o que pôde.
Fez sobretudo o que sempre
lhe mandava o coração.

Thiago de Mello, em Faz escuro mas eu canto

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