Quando
Michael Dunbar e a Noiva do Nariz Quebrado se casaram, a primeira
coisa que fizeram foi empurrar o piano outra vez pela rua Pepper, até
o número 37. Precisaram da ajuda de mais seis homens da vizinhança
e também de um engradado de cerveja. (A exigência era a mesma dos
garotos de Bernborough: a cerveja tinha que estar gelada.) Entraram
pelos fundos da casa para não terem que subir os degraus.
— A
gente tinha que ter chamado os mesmos caras da outra vez — disse
Michael mais tarde. Apoiou um dos braços no tampo de nogueira, como
se ele e o piano fossem bons amigos. — Eles entregaram o piano no
endereço certo, no fim das contas.
Penny
Dunbar apenas sorriu.
Estava
com uma das mãos apoiada no instrumento.
E
a outra nele.
***
Alguns
anos depois, eles compraram a casa dos sonhos e para lá se mudaram.
Era relativamente perto, próximo a um hipódromo, com uma pista e
cocheiras logo atrás.
Fizeram
a visita numa manhã de sábado:
Uma
casa na rua Archer, número 18.
O
corretor aguardava lá dentro e perguntou o nome deles, os únicos
que deve ter ouvido naquele dia, porque pelo visto mais ninguém
havia demonstrado interesse pelo imóvel.
Na
casa da rua Archer havia corredor, havia cozinha. Havia três
quartos, um banheirinho, um quintalzão com um grande varal redondo,
e a imaginação de Penny e Michael ganhou asas; viram crianças
correndo pelo gramado e surtos de caos pueril. Para eles, era o
paraíso, amor à primeira vista:
Com
um dos braços na haste do varal e os olhos focados nas nuvens acima,
Penny ouviu um barulho. Ela se virou para o corretor e indagou:
— Com
licença, mas que barulho é esse?
— Perdão?
Era
o momento que ele mais temia, possivelmente a razão de ter perdido
os outros casais a quem mostrara a propriedade — todos com sonhos e
ideais parecidos sobre a vida naquela casa. Era provável que também
houvessem imaginado as mesmas crianças risonhas arrumando confusão
por causa de trapaças nos jogos de futebol ou arrastando bonecas
pela relva e pela terra.
— Não
está ouvindo? — insistiu ela.
O
homem ajustou a gravata.
— Ah,
isso?
***
Na
noite anterior, quando estudaram o mapa do bairro no guia de ruas,
viram que havia um terreno atrás da casa, e a legenda dizia apenas
Cercanias. Agora Penny estava certa de que ouvia cascos se
aproximando nos fundos e decifrou o cheiro que pairava no quintal —
de animal, feno e cavalos.
O
corretor se apressou para levá-los para dentro da casa.
Não
deu certo.
Penny
estava hipnotizada pelo trote vindo do outro lado da cerca.
— Ei,
Michael! — chamou ela. — Pode me levantar?
Ele
cruzou o quintal e foi até ela.
Os
braços dele, as coxas de varapau dela.
***
Do
outro lado, Penny viu as cocheiras, o hipódromo.
Atrás
da cerca, uma pista de asfalto fazia a curva ao redor da casa; a sra.
Chilman era a única vizinha. Então Penny viu o gramado e as
construções com telhado inclinado, e a cerca branca, obrigatória
no esporte — dali, mais pareciam palitos de dente.
Cavalariços
conduziam os animais do hipódromo para as cocheiras, a maioria sem
notar a presença dela, alguns acenando com a cabeça. Um ou dois
minutos depois, um deles, bem mais velho do que os outros, se
aproximou, guiando o último cavalo. O animal baixou a cabeça, e o
homem o enxotou com desdém. Pouco antes de avistar Penny, deu um
tapinha na boca do animal.
— Vem
logo!
Penny,
como não poderia deixar de ser, sorriu diante da cena.
— Bom
tarrrde! — Ela pigarreou. — Olá!
O
cavalo notou a presença dela na hora, mas o cavalariço continuou
alheio.
— Ué?
Tem alguém aí? — perguntou o homem.
— Aqui
em cima.
— Jesus
amado, assim você me mata do coração!
Era
um tipo atarracado, de cabelo encaracolado, com rosto e olhos úmidos,
e o cavalo o arrastava pelo terreno, se aproximando de Penélope. O
animal tinha um raio branco traçado do topo da cabeça até as
narinas, e o resto era marrom-nogueira. O cavalariço viu que não
tinha saída. O cavalo não ia chegar à cocheira tão cedo.
— Tá
certo. Vai com tudo, meu bem.
— É
sério?
— Sim,
pode fazer carinho. Esse aqui é um baita de um bunda-mole.
Penny
checou se estava tudo bem com Michael, porque, verdade seja dita, ela
era leve, mas não era feita de vento, e os braços do marido estavam
começando a tremer.
Ela
mergulhou a mão no pelo aveludado da faixa branca e reluzente do
animal e mal pôde conter a alegria. Ela encarou seus olhinhos
curiosos. Açúcar. Por acaso tem açúcar aí, senhora?
— Qual
é o nome dele? — perguntou Penélope.
— Bom,
o nome de corrida é Patrimônio da Cidade. — Ele deu um tapinha no
peito do cavalo. — Nas cocheiras, chamam de Sangue nos Olhos, mas
ele não faz jus ao nome.
— Ele
não é muito rápido?
O
cavalariço riu.
— Você
é mesmo nova por aqui, não é? Os cavalos dessas cocheiras
são uns inúteis.
Ainda
assim, Penélope ficou encantada, dando risada quando o cavalo
sacudiu a cabeça, pedindo mais carinho.
— Oi,
Sangue nos Olhos.
— Aqui,
dá isso aqui pra ele. — Ele ofereceu alguns torrões de açúcar
encardidos para ela. — Pode dar. Esse pangaré é uma causa
perdida, não tem jeito.
Debaixo
dela, Michael Dunbar estava concentrado em seus braços, se
perguntando por quanto tempo ainda conseguiriam aguentá-la.
Enquanto
isso, o corretor só pensava: vendida.
Markus Zusak, em O construtor de pontes
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