domingo, 23 de junho de 2024

A Juliette

Eu estava em Paris e li que a Juliette Grecco estava se apresentando em algum lugar. Não fui vê-la. Juliette tinha passado algum tempo desaparecida e ressurgira não só com a mesma cara que tinha quando era a musa do existencialismo, mas com a mesma franja! O existencialismo, para quem nasceu agora, foi uma onda filosófica baseada em Heidegger e propagada por Sartre, entre outros, que dizia que a existência precede a essência e cujo principal mandamento foi exemplarmente resumido no Brasil numa marchinha de carnaval sobre a Chiquita Bacana lá da Martinica, uma existencialista com toda a razão que só fazia o que mandava o seu coração.
Na Paris dos anos quarenta e tantos e cinquenta e poucos o coração mandava que todos usassem gola rulê (ao contrário da Chiquita Bacana que só usava uma casca de banana nanica) e passassem o tempo em cafés discutindo o ser e o nada e paquerando a Juliette, que devia ter, pelos meus cálculos, uns 16 anos. Como cantora ela inaugurou a linhagem das Jane Birkin e etc., de intérpretes que, se tivessem voz, só atrapalharia.
Não sei se ela contribuía com alguma coisa às discussões filosóficas do momento. Acho que sua função era ser, exatamente, a Juliette Grecco do grupo. Gerações ainda por vir teriam suas próprias Juliettes Greccos — só eu conheci umas três — mas nenhuma se igualou ao protótipo. E ela, ainda por cima, namorou o Miles Davis. Eu deveria ter ido ver a Juliette. Uma mulher que foi a inspiração, ou mais do que isto, para Sartre e Miles Davis juntos merecia os mesmos respeitos devidos a Lou Salome, Alma Mahler, Yolanda Penteado e outras cujos nomes, só os nomes, evocam toda uma era e seu clima.
Mas não fui ver a Juliette. Quis evitar um choque cronológico. Me lembrei de um filme visto há muito tempo em que o corpo de um alpinista desaparecido anos antes é encontrado, intacto, numa geleira perto de um vilarejo, nos Alpes. Entre os habitantes do vilarejo que correm para ver o achado está a namorada do alpinista, que não sabe o que sentir diante daquela visão insólita — ou, no caso, sólida — do seu amado preservado em gelo, exatamente como era quando desapareceu. Ou seja, com vinte ou trinta anos menos do que ela. Qual é a reação apropriada? Gratidão, por poder rever o namorado como ele ficou na sua memória, pelo menos por alguns instantes antes que comece o degelo? Um sentimento de traição porque o tempo não fez com ele o que fez com ela? Resignação filosófica diante de uma das trágicas ironias da vida? Ou só espanto, sem literatura?
Como os artistas franceses parecem viver num ritmo metabólico diferente do nosso (até o Aznavour e o Henri Salvador ainda estavam na ativa, e Johnny Halliday continuava adolescente), eu estava ameaçado de ter, diante de uma Juliette Grecco com a mesma franja que tinha há cinquenta anos, o mesmo tipo de confusão de emoções da namorada do alpinista. A cronologia enlouqueceria. Nos defrontaríamos com nós mesmos naquele tempo, só que agora sem o equipamento necessário para enfrentá-lo. Não saberíamos mais nem a língua que falávamos. Ainda se diz “fenomenologia”? O que foi mesmo que se decidiu, ou não se decidiu, nos cafés de Paris, e em todos os cafés de Paris do mundo, na época? Quem ganhou, afinal, o ser ou o nada?
Me imagino puxando conversa com a Juliette Grecco congelada.
Como vão o Jean-Paul e a Simone?
Bem, bem. Vou encontrá-los daqui a pouco.
E o Miles, tem aparecido?
Menos do que eu gostaria.
Dê um abraço nele que eu mando.
Quem é você?
Ninguém, ninguém. Um visitante do futuro.
Não estou entendendo.
Eu também não.
Foi melhor não ter ido ver a Juliette Grecco.

Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis 

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