Em
matéria de gente da noite, nunca fomos assim um grande celeiro. Aqui
na ilha, todo mundo é orador, escritor e poeta; produzimos elevado
número de patriotas; herói, nem se fala; jogador de futebol, só
para ficar num exemplo recente, temos Toninho, que foi lateral do
Flamengo e da Seleção e que é aqui da Gameleira; cantores,
desculpem, mas contamos com Natércio Bastos, que não nasceu aqui
mas é como se tivesse, cujo gogó eu só dou ousadia de comparar com
o de Orlando Silva; senhoras prendadas, é uma fartura; mulher
bonita, de todas as cores, pergunte a quem já passou aqui e espere a
baba; até artistas de cinema temos inúmeros, todo mundo que vem
aqui filma a gente.
Mas
em matéria de noite, forçoso é reconhecer que não brilhamos como
nos outros setores. Damas da noite não temos, só a variedade
botânica. Meu amigo Zé de Honorina considera isso uma vergonha,
sinal de atraso mesmo, se queixa muito. Ele é do tempo em que os
bregas eram casas de cultura. A freguesia ia lá com a finalidade
habitual, mas tudo num clima de muito respeito, cordialidade e
refinamento. As raparigas recitavam versos, a dona da casa oferecia
docinhos, era uma coisa fina mesmo, e Zé sente falta. São os
tempos.
Grandes
boêmios também nos faltam. Abundam vocações, dolorosamente
perdidas pela deficiência do meio ambiente. No tempo em que
funcionava o Iate Clube, a orquestra era altamente boêmia, mas
padecia da ausência de incentivo. Tínhamos Pititinga e seu
trompete, hoje abrilhantando cabarés de Salvador. Nascimento do
saxofone e da clarineta morreu. Almerindo do trombone também morreu.
Carlito da bateria abandonou a arte, hoje é alto funcionário,
ganhando rios e rios de dinheiro. E assim por diante.
É
bem verdade que hoje em dia temos o Chega-Mais, que é uma espécie
de Hippopotamus montado num curral de jegue. Mas tem luz
estroboscópica e som incrementado. Quando o aplaudido cineasta
Neville d’Almeida nos visitou, tive a oportunidade de levá-lo ao
Chega-Mais, eis que ele é homem da noite e eu queria mostrar que
Itaparica não curva a cabeça para ninguém. Chegamos lá, gostamos
bastante, vimos as moças dançando lambada e tudo mais. Entretanto,
descobrimos rapidamente que, se beliscássemos as moças ou
tomássemos outras ousadias sofisticadas, tão comuns nos grandes
centros urbanos, elas reagiriam desfavoravelmente. Elas só vão lá
para dançar lambada mesmo.
Assim,
qual não foi minha surpresa quando, ao desfilar solitário pela
beira do cais, lá pelas dez e meia da noite, tudo deserto (“o
movimento da lanchonete hoje foram quatro cervejas”, me havia
informado Zé de Honorina rancorosamente), topo com Isaías Português
que, muito lépido, vai na direção da ponte nova.
— Isaías,
você por aqui a esta hora? Alguma festa?
— Pois!
— Festa
mesmo?
— É
como se fosse. Vou ao novo bar.
— Ao
novo bar? Tem um novo bar na cidade?
— Ah,
não sabia? Pois! É, é! Um novo bar, coisa porreira mesmo!
— Ai,
que estás a dizer-me? Antão vais aos copos?
— Aos
copos e às miúdas!
— Às
miúdas? Como “às miúdas”? Que miúdas? Miúdas do tipo
daquelas que ficam a passar acima e abaixo na avenida da Liberdade?
— Pois!
Desse mesmíssimo tipo. Só que novinhas, bonitinhas, todas com
dentes, bestiais mesmo.
— Antão
já estiveste lá antes?
— Não,
esta é a primeira vez. Mas disse-me o italiano...
— O
italiano? Que italiano?
— Um
italiano novo que chegou aí, foge-me o apelido, é um nome italiano
desses. Esse italiano montou o bar naquela barcaça imensa que vive
atracada à ponte nova, diz-me que está catita, tudo muito moderno e
com camarotes.
— Com
o quê? O quê?
— Ca-ma-ro-tes,
é o que estou a dizer-te!
— Troças,
Isaías, fazes piada.
— Não,
senhor, não faço piada, não senhor! Bar, miúdas e camarotes, é o
que te digo! Se não acreditas, por que não me fazes companhia?
— Mas,
Isaías, tu achas...
— Anda
lá!
— Mas
não achas que, se as nossas santas esposas vierem a saber desta
proeza, não será uma grande estopada? Olha que vão ficar mesmo nas
tintas, se souberem!
— Disse
lá à minha que ia até a Fonte da Bica para fazer o quilo, pois a
caldeirada que comi à ceia bateu-me na fraqueza.
— Bem
pensado, caríssimo Isaías. Aos copos e às miúdas!
Bomba,
bomba, bomba — Itaparica com barzinho e motel flutuante! Imaginei
meu avô rodopiando na sepultura (não por indignação, mas por não
terem inventado essas coisas ainda no tempo dele, meu avô era
danado). Fazia-se indispensável uma imediata visita.
O
italiano foi muito efusivo, levou-nos ao main lounge, onde
havia um barzinho bem-arrumado e moças dançando. Novinhas,
bonitinhas, todas com dentes. Isaías e eu sentamos, o italiano soube
que eu era escritor, levantou-se maravilhado, bateu no peito e, quase
às lágrimas, recitou Dante. Tivemos um papo literário e,
subsequentemente, observamos a falta de outros frequentadores. Além
de nós três, só havia as moças.
— Questo
è il problema — disse o italiano. — Qui non tem homi.
— Não
tem homem? Bem, eu e o Isaías somos homens, hein Isaías, ha-ha!
— E
muito homens!
— Ma
vocês... No me refiro in questo sentido.
— Ah,
em outro sentido, ah, sim.
Incômodo
silêncio. No outro sentido, ele tinha razão. Isaías e eu nos
entreolhamos, olhamos as mocinhas, fomos nos levantando um tantinho
sem graça. Estava ficando tarde, outro dia voltaríamos com mais
calma etc. etc. Quando já íamos na ponte, o italiano acenou
afavelmente.
— Io
non disse? — gritou ele.
— Ah,
vai pastaire — resmungou Isaías.
Sim,
claro, outro dia voltaríamos, assim a primeira vez era para um
reconhecimento, uma avaliação, todo mundo sabe como são essas
coisas. Despedimo-nos à porta de minha casa, ele prosseguiu até a
dele. Entrei e, como marido honesto, achei que devia comunicar o
sucedido à minha mulher, para evitar qualquer problema.
— Mulher
— disse eu, cutucando-lhe as costelas para ela acordar —, acabo
de chegar de um motel.
— E
eu do Moulin Rouge — disse ela. — Se as crianças
acordarem com esse barulho, quem vai cuidar é você.
Ela
é quem sabe da vida dela, pensei eu, adormecendo com um riso cínico
nos lábios.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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