domingo, 1 de outubro de 2023

Piloto de Guerra | XXVII


Mas estraguei tudo. Dilapidei a herança. Deixei apodrecer a noção de Homem.
Para salvar esse culto de um Príncipe contemplado através dos indivíduos, e a alta qualidade das relações humanas que esse culto fundava, minha civilização, no entanto, dispendeu uma energia e um talento consideráveis. Todos os esforços do “Humanismo” só tenderam a esse fim. O Humanismo se deu por missão exclusiva esclarecer e perpetuar a primazia do Homem sobre o indivíduo. O Humanismo pregou o Homem.
Mas quando se trata de falar sobre o Homem, a linguagem se torna incômoda. O Homem se distingue dos homens. Nada se diz de essencial sobre a catedral, se não se falar das pedras. Não se diz nada de essencial sobre o Homem, ao se tentar defini-lo por qualidades de homem. O Humanismo trabalhou assim numa direção já obstruída. Tentou captar a noção de Homem por uma argumentação lógica e moral, e a transportá-lo assim nas consciências.
Nenhuma explicação verbal jamais substitui a contemplação. A unidade do Ser não é transponível em palavras. Se eu desejasse ensinar aos homens, cuja civilização ignorasse, o amor por uma pátria ou por uma propriedade, não disporia de nenhum argumento para comovê-los. São os campos, os pastos e o gado que compõem uma propriedade. Cada um e, todos juntos, têm por papel enriquecer. Há, não obstante, na propriedade, alguma coisa que escapa à análise dos elementos, pois há proprietários que, por amor ao que é seu, arruinar-se-iam para salvá-lo. É, bem ao contrário, essa “alguma coisa” que enobrece os elementos com uma qualidade particular. Eles se tornam o gado de uma propriedade, as pradarias de uma propriedade, os campos de uma propriedade…
Assim nos tornamos homem de uma pátria, de uma profissão, de uma civilização, de uma religião. Mas para se proclamar de tais Seres, convém, primeiro, fundá-los em si. E, onde não existe o sentimento da pátria, nenhuma linguagem o transportará. Somente por atos é possível fundar-se o Ser a que se pretende pertencer. Um Ser não é o império da linguagem, mas o dos atos. Nosso Humanismo negligenciou os atos. Fracassou em sua tentativa.
O ato essencial aqui recebeu um nome. É o sacrifício.
Sacrifício não significa nem amputação nem penitência. É essencialmente um ato. É um dom de si mesmo ao Ser a que se almeja pertencer. Apenas este compreenderá o que é uma propriedade, pois terá sacrificado uma parte de si, lutado para salvá-la e sofrido para embelezá-la. Então lhe virá o amor pela propriedade. Uma propriedade não é a soma dos interesses, eis o erro. É a soma dos dons.
Enquanto minha civilização se apoiou em Deus, salvou essa noção do sacrifício que fundava Deus no coração do homem. O Humanismo negligenciou o papel essencial do sacrifício. Pretendeu transportar o Homem pelas palavras e não pelos atos.
Só dispunha, para salvar a visão do Homem através dos homens, dessa mesma palavra enfeitada por uma maiúscula. Nós nos arriscávamos a derrapar numa ladeira perigosa e confundir, um dia, o Homem com o símbolo da média ou do conjunto dos homens. Nós arriscávamos confundir nossa catedral com a soma das pedras.
E, pouco a pouco, perdemos a herança.
Em vez de afirmar os direitos do Homem através dos indivíduos, começamos a falar dos direitos da Coletividade. Pudemos ver introduzir-se insensivelmente uma moral do Coletivo que negligencia o Homem. Essa moral explicará claramente por que cabe ao indivíduo sacrificar-se pela Comunidade. Ela não explicará mais, sem artifícios de linguagem, por que uma Comunidade deve se sacrificar por um só homem. Porque é íntegro que mil morram para libertar um único da prisão da injustiça. Nós nos lembramos disso ainda, mas estamos pouco a pouco esquecendo. E, no entanto, é nesse princípio, que nos distingue tão claramente do cupinzeiro, que reside, antes de tudo, nossa grandeza.
Por falta de um método eficaz, inserimos Humanidade — que se encontra no Homem — nesse cupinzeiro, que é a soma dos indivíduos.
O que tínhamos a opor às religiões do Estado ou da Massa? O que se tinha tornado nossa grande imagem do Homem nascido de Deus? Ela mal se reconhecia através de um vocabulário que estava vazio de sua substância.

Pouco a pouco, esquecendo o Homem, nós limitamos nossa moral aos problemas do indivíduo. Exigimos de cada um que não lesasse outro indivíduo. De cada pedra, que não lesasse outra pedra. E decerto elas não se lesam uma à outra, quando estão empilhadas num campo. Mas elas lesam a catedral que porventura tenham fundado, a qual, por sua vez, lhes teria fundado a própria significação.
Nós continuamos a pregar a igualdade dos homens. Mas, tendo esquecido o Homem, não entendemos mais nada do que falávamos. Por não sabermos sobre o que fundar a Igualdade, fizemos dela uma afirmação vaga, da qual não mais soubemos nos servir. Como definir a Igualdade, no plano dos indivíduos, entre o sábio e o bruto, o imbecil e o talentoso? A igualdade, no plano material, exige, se pretendermos definir e realizar, que ocupem todos um lugar idêntico e exerçam o mesmo papel. O que é absurdo. O princípio da Igualdade se abastarda, então, em princípio de identidade.
Continuamos a pregar a Liberdade do homem. Mas, tendo esquecido o Homem, definimos nossa Liberdade como uma licença vaga, exclusivamente limitada ao erro cometido contra outrem. O que é vazio de significado, pois não há ato que não engaje outrem. Se me mutilar, sendo soldado, sou fuzilado. Não há indivíduo sozinho. Quem se esquiva, lesa uma comunidade. Quem é triste, entristece os outros.
De nosso direito a uma liberdade assim entendida, não soubemos mais nos servir sem contradições intransponíveis. Sem saber definir em que caso nosso direito era válido, e em que caso não era mais, fechamos hipocritamente os olhos, a fim de salvar um princípio obscuro sobre os inumeráveis entraves que toda sociedade, necessariamente, trazia a nossas liberdades.
Quanto à Caridade, nem mesmo ousamos mais pregá-la. Com efeito, outrora o sacrifício que funda os Seres tomava o nome de Caridade quando honrava a Deus através de sua imagem humana. Através do indivíduo, doávamos a Deus ou ao Homem. Mas, tendo esquecido Deus ou o Homem, só doávamos ao indivíduo. Desde então, a Caridade tomava frequentemente a figura de ação inaceitável. É à Sociedade, e não ao temperamento individual, que cabe assegurar a equidade no compartilhamento das provisões. A dignidade do indivíduo exige que ele não seja reduzido à vassalagem pelas larguezas de outrem. Seria paradoxal ver os possuidores reivindicar, além da posse de seus bens, a gratidão daqueles que nada possuem.
Mas, acima de tudo, nossa caridade mal compreendida se voltava contra a sua finalidade. Exclusivamente fundada sobre os movimentos de piedade para com os indivíduos, ter-nos-ia proibido qualquer corretivo. Enquanto a Caridade verdadeira, sendo exercício de um culto ao Homem, para além do indivíduo, impunha combater o indivíduo para nele fazer crescer o Homem.

Assim, perdemos o Homem. E, perdendo o Homem, esvaziamos de calor essa fraternidade, logo a que nossa civilização nos pregava, pois que somos irmãos em alguma coisa e não simplesmente irmãos. O compartilhamento não garante a fraternidade. Esta se liga unicamente ao sacrifício. Liga-se ao dom comum ao que é mais vasto que nós mesmos. Mas, confundindo com um minguamento estéril essa raiz de toda existência verdadeira, nós reduzimos nossa fraternidade à mera tolerância mútua.
Cessamos de doar. Contudo, se pretendo não doar senão a mim mesmo, nada recebo, pois não construo nada do que me constitui e por isso não sou nada. Se vierem agora exigir que morra por interesses, eu me recusarei a morrer. O interesse manda primeiro viver. Qual é o impulso de amor que pagaria minha morte? Morre-se por uma casa. Não por objetos ou por paredes. Morre-se por uma catedral. Não por pedras. Morre-se por um povo. Não por uma multidão. Morre-se pelo amor do Homem, se ele for o ponto de sustentação do conjunto de uma Comunidade. Morre-se unicamente por aquilo por que se pode viver.
Nosso vocabulário parecia quase intacto, mas nossas palavras, esvaziadas de substância real, nos levariam, se pretendêssemos usá-las, a contradições sem saída. Éramos obrigados a fechar os olhos a esses litígios. Nós éramos obrigados, por não sabermos construir, a deixar as pedras amontoadas no campo, e a falar da Coletividade, com prudência, sem ousar precisar muito bem sobre o que falávamos, pois, de fato, não falávamos de nada. Coletividade é palavra vazia de significado, enquanto Coletividade não se ligar a alguma coisa. Uma soma não é um Ser.

Se a nossa Sociedade ainda parecia desejável, se nela o Homem ainda conservava algum prestígio, era na medida em que a civilização verdadeira, a qual traíamos por nossa ignorância, prolongava sobre nós seu brilho condenado e nos salvava, apesar de nós. Como nossos adversários compreenderiam o que não compreendíamos mais? Tudo o que viram de nós foram essas pedras amontoadas. Tentaram dar um sentido a uma Coletividade que nós não sabíamos mais definir, por não nos lembrarmos do Homem.
Alguns chegaram, de súbito, alegremente, às conclusões mais extremas da lógica. Dessa coleção, fizeram uma coleção absoluta. As pedras devem ser idênticas às pedras. E cada pedra reina soberana sobre si mesma. A anarquia se lembra do culto ao Homem, mas o aplica, com rigor, ao indivíduo. E as contradições que surgem desse rigor são piores do que as nossas.
Outros juntaram as pedras espalhadas em pilhas no campo. Pregaram os direitos da Massa. A fórmula tampouco satisfaz. Pois se é intolerável que um único homem tiranize uma Massa, é igualmente intolerável que uma Massa esmague um único homem.
Outros se apoderaram dessas pedras sem poder e, dessa soma, fizeram um Estado. Tal Estado tampouco transcende os homens. Também ele é expressão de uma soma. Ele é poder da Coletividade delegado às mãos de um indivíduo. Ele é reino de uma pedra, a qual pretende identificar-se às outras, no conjunto de pedras. Esse Estado prega claramente uma moral do Coletivo que recusamos ainda, mas para a qual caminhamos, nós mesmos, lentamente, por não nos lembrarmos do Homem, o único que justificaria nossa recusa.
Esses fiéis da nova religião opor-se-ão a que vários mineiros arrisquem sua vida para o salvamento de um único mineiro soterrado. Pois o monte de pedras, então, está lesado. Eles darão cabo do gravemente ferido, se ele atrapalhar o avanço de um exército. O bem da Comunidade, eles estudarão na aritmética — e a aritmética os governará. Nisso perderão de transcender a maiores do que si mesmos. Odiarão, por conseguinte, o que difere deles, pois não disporão de nada, acima de si mesmos, em que fundir-se. Qualquer costume, qualquer raça, qualquer pensamento diferente se tornará para eles uma afronta. Eles não disporão do poder de absorver, pois para converter o Homem em si, convém não amputá-lo, mas exprimi-lo a si mesmo, oferecer um objetivo a suas aspirações e um território a suas energias. Converter, sempre é libertar. A catedral pode absorver as pedras, que nela tomam um sentido. Mas o monte de pedras não absorve nada e, sem condições de absorver, esmaga. Assim é, mas de quem é a culpa?
Não mais me surpreende que o monte de pedras, que é pesado, tenha se sobreposto às pedras desordenadas.
Entretanto, sou eu o mais forte.

Sou o mais forte se me reencontro. Se nosso Humanismo restaurar o Homem. Se soubermos fundar nossa Comunidade e se, para fundá-la, usarmos de um só instrumento eficaz: o sacrifício. Nossa Comunidade, tal como nossa civilização a construiu, também não era a soma de nossos interesses — ela era a soma de nossos dons.
Eu sou o mais forte, porque a árvore é mais forte do que as matérias do solo. Ela as drena para si. Ela os transforma em árvore. A catedral é mais brilhante do que os amontoados de pedras. Eu sou o mais forte porque só minha civilização tem poder de amalgamar em sua unidade, sem amputar, as diversidades particulares. Ela vivifica a fonte de sua força, ao mesmo tempo que nela se sacia.

Eu quis, na hora da partida, receber antes de doar. Minha pretensão era vã. Foi como a triste aula de gramática. É preciso dar antes de receber… E construir antes de habitar.
Fundei meu amor pelos meus nesse longo dom do sangue, como a mãe funda o seu pelo dom do leite. Aí está o mistério. É preciso começar pelo sacrifício para fundar o amor. O amor, depois, pode solicitar outros sacrifícios e empregá-los em todas as vitórias. O homem deve sempre dar os primeiros passos. Deve nascer antes de existir.
Voltei da missão tendo fundado meu parentesco com a pequena fazendeira. Seu sorriso me foi transparente e, através dele, vi minha vila. Através da minha vila, meu país. Pois sou de uma civilização que escolheu o Homem como pilar. Sou do Grupo 2/33, que desejava combater pela Noruega.
Pode ser que Alias, amanhã, me designe para outra missão. Eu me vesti, hoje, para o serviço de um deus ao qual eu estava cego. O tiro de Arras trincou o casco e eu enxerguei. Todos os nossos enxergaram também. Se então eu decolar no amanhecer, saberei pelo que ainda estou combatendo.
Mas desejo me lembrar do que vi. Preciso de um Credo simples para me lembrar.

Eu combaterei pela primazia do Homem sobre o indivíduo — como do Universal sobre o particular.
Eu creio que o culto do Universal exalte e una as riquezas particulares e funde a única ordem verdadeira, que é a da vida. Uma árvore é uma ordem, apesar de suas raízes diferirem dos galhos.
Eu creio que o culto do particular acarrete somente a morte, pois funda a ordem na semelhança. E confunde a unidade do Ser com a identidade de suas partes. E devasta a catedral para alinhar as pedras. Eu combaterei então todo aquele que pretender impor um costume particular aos outros costumes, um povo particular aos outros povos, uma raça particular às outras raças, um pensamento particular aos outros pensamentos.

Eu creio que a primazia do Homem funde a única Igualdade e a única Liberdade que tenham significado. Eu creio na igualdade dos direitos do Homem através de cada indivíduo. E creio que a Liberdade é a da ascensão do Homem. Igualdade não é Identidade. A Liberdade não é a exaltação do indivíduo contra o Homem. Eu combaterei todo aquele que pretenda subjugar a um indivíduo — como a uma massa de indivíduos — a liberdade do Homem.

Eu creio que minha civilização denomine Caridade o sacrifício consentido ao Homem, a fim de estabelecer seu reino. A caridade é o dom do Homem, através da mediocridade do indivíduo. Ela funda o Homem. Eu combaterei todo aquele que, pretendendo que minha caridade honre a mediocridade, renegue o Homem e, assim, aprisione o indivíduo numa mediocridade definitiva. Eu combaterei pelo Homem. Contra seus inimigos. Mas também contra mim mesmo.

Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra

Nenhum comentário:

Postar um comentário