terça-feira, 29 de agosto de 2023

Seara Vermelha | 5


Talvez em toda a fazenda fossem Zefa e a velha Jucundina as únicas pessoas que naquele crepúsculo não pensavam na festa da noite, em casa de Ataliba. O próprio Gregório, que vinha curvado sob o peso do saco de milho, não podia deixar de se recordar que era o dia da festa, pois tinha visto quando os noivos voltavam, junto com Ataliba, Joana e mais alguns, do povoado onde haviam ido se casar. Gregório não desejava ser visto e se escondeu na capoeira para deixá-los passar. Cosme, que era o noivo, cego de um olho, levava os sapatos na mão, naturalmente arrancara-os na estrada. Dava o braco a Teresa e riam os dois, felizes, enquanto atrás ia um converseiro animado sobre a festa:
Bastião é home de palavra. Diz que vinha, vem mesmo... – era Ataliba que afirmava para um dos que iam com ele. Gregório conhecia Bastião, o tocador de harmônica mais afamado daquelas cinco léguas. Não era a toda festa que ele vinha. Fazia-se de rogado, dava desculpas – doença, trabalho, cansaço – mas festa sem ele perdia metade da animação. Enquanto o grupo passava, Gregório desejou que Bastião estivesse presente. Alias em festa em casa de Ataliba ele ia sempre e tocava a noite toda. Gregório desejava que Bastião estivesse presente não porque pretendesse ir a festa, não iria. Mas gostava de Ataliba e sabia que o velho festeiro sofreria muito com a ausência do tocador. Afinal era rara uma festa por aquelas bandas e quando havia uma não se comentava outra coisa muitos dias antes e muitos dias depois.
O bando ia longe, Gregório voltou a fazer o seu caminho, o saco as costas, furtando-se aos olhares, evitando passar pela estrada real. E ia pensando na festa, em Ataliba, em Cosme, em Teresa. Bonita cabrocha. Ele mesmo, Gregório, andara de olho nela quando chegara por ali e ela era ainda meninazinha, apenas botando os peitos mas já de sorriso fácil e interesseiro. Porem Gregório tinha outros projetos, não era tempo ainda de trazer mulher para casa. Era um caboclo forte e decidido, de rosto sombrio onde as grandes sobrancelhas fechavam-se sobre olhos pequenos. Casar só quando tivesse terra sua, com escritura passada no cartório, e era para consegui-la que trabalhava dia e noite, sem descanso. Enquanto Militão, que era seu socio no plantio da roca, gastava o saldo com as mulheres do arraial ou comprando presentes para a noiva, em cachaça ou em festas, Gregório guardava seu dinheiro e naqueles cinco anos já havia juntado algum. Comprar um pedaço de terra era tudo o que desejava.
Gregório deu um jeito nas costas, soltou o saco de milho no terreiro em frente a casa de barro batido. Frangas se agitaram inquietas na goiabeira onde se haviam empoleirado. Gregório espiou pela porta aberta da casa, Militão não chegara ainda. Voltou-se então para a estrada e assoviou. A resposta veio entre o mandiocal e ele distinguiu o vulto de Militão que vinha andando com a foice ao ombro. Sentou-se em cima do saco de milho e esperou. Havia no seu rosto fechado um quase sorriso como alguém que houvesse regressado triunfante de uma luta difícil.
Militão era um mulato alto e sorridente, andava descansado. Colocou a foice em pé, arrimada contra a parede da casa, acocorou-se ao lado de Gregório e seu primeiro comentário foi sobre a festa:
Ta u'a animação que nunca vi igual...
Gregório não respondeu e só então Militão reparou no saco de milho. Admirou-se:
Arranjou, hein?
O sorriso abriu-se de todo no rosto de Gregório. Ainda assim era um sorriso pequeno que logo desapareceu:
Não disse... Oito mil-réis mais barato... Valeu a pena...
Ninguém viu?
Me enfiei pela capoeira, até cortei os pés nos espinhos. Não encontrei alma vivente... E Leocádio não vai piar que ele não é besta...
Militão riu, boca sem dentes, escancarada:
Oito mil-réis... Valeu a pena... Só que se Artur desconfiar e capaz até...
Capaz de que?
De botar a gente pra fora...
As sombras do crepúsculo caiam sobre os dois homens, Gregório levantou-se de cima do saco de milho, aproximou-se de Militão. Frangas pularam da goiabeira, vieram beliscar o saco, Militão tangeu-as com um pé:
Sai, dianho...
Gregório olhou o mandiocal que se estendia além do terreiro, em derredor da casa:
Vou te dizer uma coisa, Militão – agora nem um resto de sorriso em seu rosto novamente fechado e sombrio. -- Nem a polícia me bota pra fora daqui...
Militão suspendeu os olhos, fitou o companheiro, viu a decisão estampada no seu rosto. Estendeu os bracos como se aquela decisão pouco importasse ante o fato indiscutível:
E só ele querer... A terra e mesmo do doutor Aureliano...
Gregório olhava o mandiocal vicejante, sobre o qual boiavam as sombras crepusculares:
Mas a mandioca e de nos dois... Quem derrubou a mata e rocou a capoeira? Isso aqui tava mesmo abandonado.
Tangeu as galinhas que teimavam junto ao saco de milho.
E em junho vai ta um milharal de dá gosto...
Bateu com a mão sobre o saco de milho novamente, um sorriso cortou seu rosto fechado:
Se Artur desconfiasse ficava se mordendo de raiva...
Eram obrigados a comprar no armazém da fazenda. Fora Militão nas suas andanças em busca de festa quem descobrira que poderiam comprar milho para o plantio bem mais barato se o fizessem em mãos de Leocádio. E quando contara a Gregório logo este se decidiu:
Vou comprar na mão dele. Artur que se dane...
Gregório não era de muitas palavras mas poucos como ele para o trabalho. Chegara ali fazia cinco anos, antes fora tropeiro numa outra fazenda. Como aparecera sem parentes nem aderentes corriam diversas histórias sobre seu passado, falavam em mortes, em homens assassinados a faca num barulho, mas era tudo vago e inconsistente. Militão também andava buscando trabalho, a seca o atirara para aquelas bandas, e os dois haviam conseguido o arrendamento daquela capoeira onde existia ainda um resto de mata, terreno considerado ruim pela maioria. Estava num dos extremos da fazenda, e o coronel Inácio, quando ainda era vivo, nunca plantara por ali. Gregório entendia de terra e quando Artur lhe propôs arrendar-lhe aquela capoeira, ele silenciou o protesto de Militão e aceitou de imediato. A principio trabalhavam quatro dias da semana para a fazenda, um de graça conforme mandava o contrato, os outros três para ter com que comprar a carne-seca, o feijão e a farinha. No resto da semana caiam de machado e foice na capoeira e na mata. Venderam lenha, plantaram mandioca, todos os anos renovavam o contrato. Agora não havia em toda a fazenda plantação mais bem cuidada e pela redondeza diziam de Gregório que “era um boi para o trabalho”. Enquanto Militão ria e noivava a filha de Afonso, um trabalhador assalariado, Gregório se jogava na roca sem descanso. Para ele não existia nem festa nem dia de domingo. Nunca comprara um par de botinas, roupa nova não possuía, ia ao arraial uma vez na vida, mulher-dama não levava seu dinheiro. E aos que se admiravam de tanto trabalho, Militão explicava que Gregório queria comprar aquele pedaço de terra, aquele ou outro qualquer onde pudesse dizer que estava em terra sua.
Ainda acaba fazendeiro... – comentavam.
E novamente aquelas histórias incompletas circulavam e aos poucos iam crescendo em detalhes, a fama de Gregório aumentando, novas valentias e malvadezas incorporando-se as narrações. O próprio Artur tinha-lhe um certo respeito e raramente discutia com ele, tratava-o nas palmas da mão e mais de uma vez lhe oferecera o lugar de ajudante de capataz.
Quando Militão fizera a descoberta do preço do milho, eles debateram longamente as vantagens e desvantagens da compra. Militão achava que não valia a pena arriscar-se, era demasiado perigoso. Existiam leis na fazenda que não estavam escritas mas que todos respeitavam religiosamente e uma delas era a que obrigava colonos e trabalhadores a comprar ali tudo o que necessitassem. Mas Gregório estava disposto e aos poucos foi convencendo Militão. Naquela tarde, apos o almoço, partira pelos atalhos, evitando passar ante a casa-grande, esquivando-se dos encontros.
Vi o pessoal voltando do casamento...
Cosme?
Ele mais Teresa e o veio Ataliba. Mas eles não me viram...
Vai ser um festão... Tu devia de ir...
Porém Gregório já pensava noutra coisa:
Em junho vai tá um milharal vistoso...
Militão levantou-se, arrastou o saco de milho para dentro de casa. Gregório o acompanhou:
Nós precisa falar com João Pedro... Combinar pra nóis fazer a farinha... A casa de farinha tinha sido levantada por João Pedro e todos os colonos a utilizavam, pagando em farinha ou em dinheiro o uso da prensa e do forno.
Militão concordou:
Hoje na festa eu falo com ele... Ele vai tá com a mulher.
Três pedras num canto formavam o fogão. Numa lata empretecida pelo fogo havia um resto de café da manhã. Gregório enfiou um pedaço de carne-seca num espeto, acendeu o fogo. Pela porta entreaberta entrava a noite que cobria as plantações. As labaredas cresciam no fogão sobre os gravetos. Iluminavam os rostos dos homens. Os primeiros grilos saltavam lá fora e a brisa que corria trouxe para dentro de casa um cheiro familiar de mato e terra. Militão falou:
Faz pirão só pra tu. Vou comer carne de porco na festa... Tu devia vir... Acendeu o fifó, uma luz vermelha se projetou sobre as paredes da casa:
Vou lavar os pés pra botar as botinas...
Andou para os fundos da casa. A voz de Gregório o acompanhou:
Fala com Filinha pra ajudar na farinhada... – Filinha era a noiva de Militão.
Ela e a irmã. A gente pode falar também com Marta, de seu Jeronimo.
Gertrudes pode vir também...
Houve um silêncio, depois Militão veio chegando lá dos fundos, calçado de botinas:
Hoje vou me acabar de tanto dançar...
Parou diante de Gregório que virava a carne no espeto:
Tu não quer vim?
Num vou não...
Tu precisa de vim... Vai ter cachaça à vontade e Bastião vai tocar...
Num vou ir...
Os grilos invadiam o terreiro. A carne chiava nas brasas. Militão murmurava algo sobre a festa, ainda tentando convencer o companheiro a acompanhá-lo. Gregório tomou de uma lata, dirigiu-se para a porta. Ia buscar água para fazer o pirão de farinha. Mas na porta parou, ficou espiando as plantações mal entrevistas na noite que se completara. Voava um vaga-lume perto da goiabeira onde agora as galinhas estavam quietas. Militão ia dizendo qualquer coisa sobre a beleza que a festa prometia ser mas calou-se porque a voz de Gregório atravessava o escuro da porta, ressoava dentro da casa, amedrontadora:
Botar a gente pra fora... Não tem homem que me bota daqui pra fora, eu te digo, Militão... A brisa soprou, a luz do fifó era vacilante, um cheiro de terra enchia a casa:
Nem que eu me desgrace e desgrace um comigo.
Os grilos multiplicavam-se na noite recém-chegada e na lonjura da caatinga uns sons de harmônica cortaram o silêncio.

Jorge Amado, in Seara Vermelha

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