Talvez
em toda a fazenda fossem Zefa e a velha Jucundina as únicas pessoas
que naquele crepúsculo não pensavam na festa da noite, em casa de
Ataliba. O próprio Gregório, que vinha curvado sob o peso do saco
de milho, não podia deixar de se recordar que era o dia da festa,
pois tinha visto quando os noivos voltavam, junto com Ataliba, Joana
e mais alguns, do povoado onde haviam ido se casar. Gregório não
desejava ser visto e se escondeu na capoeira para deixá-los passar.
Cosme, que era o noivo, cego de um olho, levava os sapatos na mão,
naturalmente arrancara-os na estrada. Dava o braco a Teresa e riam os
dois, felizes, enquanto atrás ia um converseiro animado sobre a
festa:
– Bastião
é home de palavra. Diz que vinha, vem mesmo... – era Ataliba que
afirmava para um dos que iam com ele. Gregório conhecia Bastião, o
tocador de harmônica mais afamado daquelas cinco léguas. Não era a
toda festa que ele vinha. Fazia-se de rogado, dava desculpas –
doença, trabalho, cansaço – mas festa sem ele perdia metade da
animação. Enquanto o grupo passava, Gregório desejou que Bastião
estivesse presente. Alias em festa em casa de Ataliba ele ia sempre e
tocava a noite toda. Gregório desejava que Bastião estivesse
presente não porque pretendesse ir a festa, não iria. Mas gostava
de Ataliba e sabia que o velho festeiro sofreria muito com a ausência
do tocador. Afinal era rara uma festa por aquelas bandas e quando
havia uma não se comentava outra coisa muitos dias antes e muitos
dias depois.
O
bando ia longe, Gregório voltou a fazer o seu caminho, o saco as
costas, furtando-se aos olhares, evitando passar pela estrada real. E
ia pensando na festa, em Ataliba, em Cosme, em Teresa. Bonita
cabrocha. Ele mesmo, Gregório, andara de olho nela quando chegara
por ali e ela era ainda meninazinha, apenas botando os peitos mas já
de sorriso fácil e interesseiro. Porem Gregório tinha outros
projetos, não era tempo ainda de trazer mulher para casa. Era um
caboclo forte e decidido, de rosto sombrio onde as grandes
sobrancelhas fechavam-se sobre olhos pequenos. Casar só quando
tivesse terra sua, com escritura passada no cartório, e era para
consegui-la que trabalhava dia e noite, sem descanso. Enquanto
Militão, que era seu socio no plantio da roca, gastava o saldo com
as mulheres do arraial ou comprando presentes para a noiva, em
cachaça ou em festas, Gregório guardava seu dinheiro e naqueles
cinco anos já havia juntado algum. Comprar um pedaço de terra era
tudo o que desejava.
Gregório
deu um jeito nas costas, soltou o saco de milho no terreiro em frente
a casa de barro batido. Frangas se agitaram inquietas na goiabeira
onde se haviam empoleirado. Gregório espiou pela porta aberta da
casa, Militão não chegara ainda. Voltou-se então para a estrada e
assoviou. A resposta veio entre o mandiocal e ele distinguiu o vulto
de Militão que vinha andando com a foice ao ombro. Sentou-se em cima
do saco de milho e esperou. Havia no seu rosto fechado um quase
sorriso como alguém que houvesse regressado triunfante de uma luta
difícil.
Militão
era um mulato alto e sorridente, andava descansado. Colocou a foice
em pé, arrimada contra a parede da casa, acocorou-se ao lado de
Gregório e seu primeiro comentário foi sobre a festa:
– Ta
u'a animação que nunca vi igual...
Gregório
não respondeu e só então Militão reparou no saco de milho.
Admirou-se:
– Arranjou,
hein?
O
sorriso abriu-se de todo no rosto de Gregório. Ainda assim era um
sorriso pequeno que logo desapareceu:
– Não
disse... Oito mil-réis mais barato... Valeu a pena...
– Ninguém
viu?
– Me
enfiei pela capoeira, até cortei os pés nos espinhos. Não
encontrei alma vivente... E Leocádio não vai piar que ele não é
besta...
Militão
riu, boca sem dentes, escancarada:
– Oito
mil-réis... Valeu a pena... Só que se Artur desconfiar e capaz
até...
– Capaz
de que?
– De
botar a gente pra fora...
As
sombras do crepúsculo caiam sobre os dois homens, Gregório
levantou-se de cima do saco de milho, aproximou-se de Militão.
Frangas pularam da goiabeira, vieram beliscar o saco, Militão
tangeu-as com um pé:
– Sai,
dianho...
Gregório
olhou o mandiocal que se estendia além do terreiro, em derredor da
casa:
– Vou
te dizer uma coisa, Militão – agora nem um resto de sorriso em seu
rosto novamente fechado e sombrio. -- Nem a polícia me bota pra fora
daqui...
Militão
suspendeu os olhos, fitou o companheiro, viu a decisão estampada no
seu rosto. Estendeu os bracos como se aquela decisão pouco
importasse ante o fato indiscutível:
– E
só ele querer... A terra e mesmo do doutor Aureliano...
Gregório
olhava o mandiocal vicejante, sobre o qual boiavam as sombras
crepusculares:
– Mas
a mandioca e de nos dois... Quem derrubou a mata e rocou a capoeira?
Isso aqui tava mesmo abandonado.
Tangeu
as galinhas que teimavam junto ao saco de milho.
– E
em junho vai ta um milharal de dá gosto...
Bateu
com a mão sobre o saco de milho novamente, um sorriso cortou seu
rosto fechado:
– Se
Artur desconfiasse ficava se mordendo de raiva...
Eram
obrigados a comprar no armazém da fazenda. Fora Militão nas suas
andanças em busca de festa quem descobrira que poderiam comprar
milho para o plantio bem mais barato se o fizessem em mãos de
Leocádio. E quando contara a Gregório logo este se decidiu:
– Vou
comprar na mão dele. Artur que se dane...
Gregório
não era de muitas palavras mas poucos como ele para o trabalho.
Chegara ali fazia cinco anos, antes fora tropeiro numa outra fazenda.
Como aparecera sem parentes nem aderentes corriam diversas histórias
sobre seu passado, falavam em mortes, em homens assassinados a faca
num barulho, mas era tudo vago e inconsistente. Militão também
andava buscando trabalho, a seca o atirara para aquelas bandas, e os
dois haviam conseguido o arrendamento daquela capoeira onde existia
ainda um resto de mata, terreno considerado ruim pela maioria. Estava
num dos extremos da fazenda, e o coronel Inácio, quando ainda era
vivo, nunca plantara por ali. Gregório entendia de terra e quando
Artur lhe propôs arrendar-lhe aquela capoeira, ele silenciou o
protesto de Militão e aceitou de imediato. A principio trabalhavam
quatro dias da semana para a fazenda, um de graça conforme mandava o
contrato, os outros três para ter com que comprar a carne-seca, o
feijão e a farinha. No resto da semana caiam de machado e foice na
capoeira e na mata. Venderam lenha, plantaram mandioca, todos os anos
renovavam o contrato. Agora não havia em toda a fazenda plantação
mais bem cuidada e pela redondeza diziam de Gregório que “era um
boi para o trabalho”. Enquanto Militão ria e noivava a filha de
Afonso, um trabalhador assalariado, Gregório se jogava na roca sem
descanso. Para ele não existia nem festa nem dia de domingo. Nunca
comprara um par de botinas, roupa nova não possuía, ia ao arraial
uma vez na vida, mulher-dama não levava seu dinheiro. E aos que se
admiravam de tanto trabalho, Militão explicava que Gregório queria
comprar aquele pedaço de terra, aquele ou outro qualquer onde
pudesse dizer que estava em terra sua.
– Ainda
acaba fazendeiro... – comentavam.
E
novamente aquelas histórias incompletas circulavam e aos poucos iam
crescendo em detalhes, a fama de Gregório aumentando, novas
valentias e malvadezas incorporando-se as narrações. O próprio
Artur tinha-lhe um certo respeito e raramente discutia com ele,
tratava-o nas palmas da mão e mais de uma vez lhe oferecera o lugar
de ajudante de capataz.
Quando
Militão fizera a descoberta do preço do milho, eles debateram
longamente as vantagens e desvantagens da compra. Militão achava que
não valia a pena arriscar-se, era demasiado perigoso. Existiam leis
na fazenda que não estavam escritas mas que todos respeitavam
religiosamente e uma delas era a que obrigava colonos e trabalhadores
a comprar ali tudo o que necessitassem. Mas Gregório estava disposto
e aos poucos foi convencendo Militão. Naquela tarde, apos o almoço,
partira pelos atalhos, evitando passar ante a casa-grande,
esquivando-se dos encontros.
– Vi
o pessoal voltando do casamento...
– Cosme?
– Ele
mais Teresa e o veio Ataliba. Mas eles não me viram...
– Vai
ser um festão... Tu devia de ir...
Porém
Gregório já pensava noutra coisa:
– Em
junho vai tá um milharal vistoso...
Militão
levantou-se, arrastou o saco de milho para dentro de casa. Gregório
o acompanhou:
– Nós
precisa falar com João Pedro... Combinar pra nóis fazer a
farinha... A casa de farinha tinha sido levantada por João Pedro e
todos os colonos a utilizavam, pagando em farinha ou em dinheiro o
uso da prensa e do forno.
Militão
concordou:
– Hoje
na festa eu falo com ele... Ele vai tá com a mulher.
Três
pedras num canto formavam o fogão. Numa lata empretecida pelo fogo
havia um resto de café da manhã. Gregório enfiou um pedaço de
carne-seca num espeto, acendeu o fogo. Pela porta entreaberta entrava
a noite que cobria as plantações. As labaredas cresciam no fogão
sobre os gravetos. Iluminavam os rostos dos homens. Os primeiros
grilos saltavam lá fora e a brisa que corria trouxe para dentro de
casa um cheiro familiar de mato e terra. Militão falou:
– Faz
pirão só pra tu. Vou comer carne de porco na festa... Tu devia
vir... Acendeu o fifó, uma luz vermelha se projetou sobre as paredes
da casa:
– Vou
lavar os pés pra botar as botinas...
Andou
para os fundos da casa. A voz de Gregório o acompanhou:
– Fala
com Filinha pra ajudar na farinhada... – Filinha era a noiva de
Militão.
– Ela
e a irmã. A gente pode falar também com Marta, de seu Jeronimo.
– Gertrudes
pode vir também...
Houve
um silêncio, depois Militão veio chegando lá dos fundos, calçado
de botinas:
– Hoje
vou me acabar de tanto dançar...
Parou
diante de Gregório que virava a carne no espeto:
– Tu
não quer vim?
– Num
vou não...
– Tu
precisa de vim... Vai ter cachaça à vontade e Bastião vai tocar...
– Num
vou ir...
Os
grilos invadiam o terreiro. A carne chiava nas brasas. Militão
murmurava algo sobre a festa, ainda tentando convencer o companheiro
a acompanhá-lo. Gregório tomou de uma lata, dirigiu-se para a
porta. Ia buscar água para fazer o pirão de farinha. Mas na porta
parou, ficou espiando as plantações mal entrevistas na noite que se
completara. Voava um vaga-lume perto da goiabeira onde agora as
galinhas estavam quietas. Militão ia dizendo qualquer coisa sobre a
beleza que a festa prometia ser mas calou-se porque a voz de Gregório
atravessava o escuro da porta, ressoava dentro da casa,
amedrontadora:
– Botar
a gente pra fora... Não tem homem que me bota daqui pra fora, eu te
digo, Militão... A brisa soprou, a luz do fifó era vacilante, um
cheiro de terra enchia a casa:
– Nem
que eu me desgrace e desgrace um comigo.
Os
grilos multiplicavam-se na noite recém-chegada e na lonjura da
caatinga uns sons de harmônica cortaram o silêncio.
Jorge Amado, in Seara Vermelha
Nenhum comentário:
Postar um comentário