[…]
Daquele
dia em diante, todas as noites eu encontrava debaixo da van prata
aquela comida que faz croc-croc. Sempre um punhado, na proporção de
uma mão humana, atrás do pneu traseiro. O suficiente para uma
refeição de gato.
Era
aquele homem que tinha desaparecido dentro do prédio quem me trazia
a comida, à noite. Quando ele me encontrava por ali, eu o
recompensava deixando que brincasse um pouco comigo, mas, mesmo que
eu não estivesse, ele deixava, respeitosamente, sua oferenda.
Às
vezes outro gato encontrava a comida antes de mim, ou acontecia de o
homem sair para algum lugar, e aí, por mais que eu esperasse, o
croc-croc não aparecia. Mesmo assim, passei a ter uma refeição
garantida praticamente todos os dias. Só que os humanos são
criaturas muito caprichosas, então é melhor nunca depender
totalmente deles. Um gato de rua esperto tem seus esquemas e se
garante em vários lugares.
E
foi assim que começou minha relação com aquele homem — éramos
apenas conhecidos, mantendo uma distância segura um do outro.
Entretanto, logo quis o destino que essa relação se transformasse
completamente.
E
esse destino doeu horrores.
Eu
estava atravessando a rua, de madrugada, quando o farol de um carro
veio em cheio na minha cara. Tentei correr, mas uma buzina gritou nos
meus ouvidos. Aí, já era.
Levei
um susto com a buzina, o que me fez demorar um segundo a mais para
correr. Não fosse por isso, eu teria conseguido escapar fácil, mas
a meio passo da calçada o carro me atingiu, com uma força espantosa
— BAM!. Depois disso, eu não vi mais nada.
Quando
dei por mim, estava caído no meio dos arbustos da calçada. Meu
corpo doía de um jeito que eu nunca tinha sentido na vida. Ah, mas
eu estava vivo!
Puxa
vida, que situação. Tentei ficar em pé… só para despencar, com
um grito. Ai, ai, ai, que dor!
Era
a minha pata traseira direita que doía absurdamente.
Voltei
a me deitar, sem forças, e lá fui eu lamber a ferida. Ah, não!
Tinha um osso espetado.
E
agora? O que eu faço? Alguém me ajude!!
Onde
já se viu, um gato de rua pedir socorro? Não temos ninguém para
nos acudir… Mas naquela hora eu me lembrei do homem, o que me dava
a comida croc-croc toda noite.
Talvez
ele me socorresse. Não sei por que pensei isso, afinal, era só um
conhecido que às vezes me levava uns agrados, e de vez em quando eu
permitia um cafuné em troca.
Saí
andando, arrastando a pata com o osso aparecendo. A cada vez que ela
raspava pelo chão, eu sentia a dor vibrar por todo o meu esqueleto.
Ao longo do caminho, várias vezes perdi as forças e caí. Não dá,
desisto, não consigo dar nem mais um passo.
Não
era uma grande distância até o prédio, mas o céu já estava
clareando quando alcancei a van prata.
Não
dá, desisto, não consigo dar nem mais um passo… Dessa vez, era
verdade.
Então,
gritei o mais alto que consegui.
Aaaaaaaaiiiiii!!!
Gritei
e gritei, sem parar, até minha voz começar a falhar. Nessas horas,
juro pra vocês, parece que até os gritos ressoam nos ossos da
gente, porque a dor só aumenta.
Quando
eu já não conseguia mais gritar, alguém apareceu na entrada do
prédio. Olhei para cima: era o homem.
— Sabia
que era você!
Ele
se aproximou correndo, transtornado.
— O
que aconteceu? Foi atropelado?
Odeio
admitir, mas foi só eu vacilar um pouco que…
— Está
doendo muito? Aposto que sim.
Não
faça perguntas idiotas, por favor! Anda logo, me ajuda!
— Você
me chamou com um grito tão agoniado que até me acordou! Estava me
chamando, não estava?
Estava,
chamei até cansar! Você demorou muito, viu?
— Você
sabia que podia contar comigo…
Eu
ia responder na defensiva, explicar que não tinha alternativa, mas
reparei que ele estava fungando.
Eu
me machuco e você é que chora?
— Que
bom que você se lembrou de mim!
Não
choramos como os humanos, mas, não sei por quê… naquela hora,
acho que entendi o que é chorar.
Quando
pensei que fosse meu fim, eu me lembrei de você. Pensei que, se você
viesse, daria um jeito de me salvar.
Você
vai me ajudar, né? Está doendo tanto! Não aguento mais.
Dói
tanto que estou com medo. O que vai ser de mim?
— Não
se preocupe, agora vai ficar tudo bem.
Ele
me acomodou em uma caixa de papelão forrada com uma toalha macia e
me colocou dentro da van prata.
Fomos
a um hospital veterinário. Vou poupá-los dos detalhes do que me
aconteceu naquele lugar terrível, fonte eterna dos meus suplícios.
Na primeira visita ao veterinário, qualquer animal aprende que nunca
mais quer voltar ali, então não tenho por que me alongar no relato
dessa experiência.
Depois
disso, fiquei hospedado na casa do homem até minha pata sarar. Ele
morava sozinho, e o apartamento até que era bem razoável. Ele
instalou um banheiro para mim em um canto ao lado do boxe e colocou
na cozinha as vasilhas para comida e água.
Pode
não parecer, mas sou um gato muito inteligente e de boas maneiras.
Aprendi num instante a usar o banheiro e nunca fiz sujeira no
apartamento dele. Eu nem afiava as unhas nos lugares que o homem não
permitiu. Vi que ele não gostava que eu afiasse nas paredes e nas
colunas, então eu usava só os móveis e o tapete. Esses, ele nunca
disse diretamente que eram proibidos. (Tudo bem, no começo ele me
olhava feio, mas sou um gato muito perspicaz, percebo direitinho se
algo é totalmente proibido ou não. Os móveis e os tapetes não
eram totalmente proibidos.)
Acho
que demorou uns dois meses para meu osso sarar e tirarem os pontos.
Nesse tempo, eu aprendi o nome do homem. Era Satoru Miyawaki.
Satoru
me chamava como lhe desse na telha: “você”, “gato”, “senhor
gato”, e por aí vai.
Natural,
já que eu não tinha nome.
E
mesmo que eu tivesse um nome, não teria como contar a Satoru, já
que ele não fala minha língua. Esse negócio de os humanos falarem
só a própria língua é muito inconveniente. Não sei se os
senhores estão cientes, mas nesse aspecto os animais são muito mais
poliglotas.
Sempre
que eu pedia para sair um pouco do apartamento, Satoru fazia o mesmo
discurso, com uma expressão tensa:
— Se
você sair, talvez não volte mais, não é? Espere só mais um
pouco, até sua pata sarar de vez. Senão, vai acabar passando o
resto da vida com esses pontos.
Eu
não entendia muito bem qual era o problema de ter os tais pontos,
pois já conseguia andar normalmente, era só ignorar umas
pontadinhas de dor, mas Satoru ficava muito aflito, então aguentei
firme e fiquei dois meses sem passear. Além do mais, se eu
arranjasse briga com algum rival, manco daquele jeito, não seria
legal.
Finalmente,
o ferimento cicatrizou por completo.
Fui
até a porta, onde sempre era barrado por aquela expressão aflita, e
exigi sair. Muito obrigado por tudo, serei eternamente grato por sua
dedicação.
A
partir de agora vou abrir uma exceção, só para você: pode brincar
comigo sempre que me encontrar em cima daquela van, mesmo que não me
dê nenhum presente.
Dessa
vez, a expressão de Satoru não era de preocupação, mas de
tristeza. Era aquela cara de “não é totalmente proibido, mas…”.
— Você
realmente gosta mais do mundo lá fora?
Ei,
ei, não faz essa cara de choro. Desse jeito eu me sinto mal de ir
embora!
— Eu
estava pensando se você não queria ser o gato aqui de casa…
Para
falar a verdade, isso nunca me ocorreu. Sabe, é que eu sou um
verdadeiro gato de rua, então a ideia de virar um bichinho de
estimação nem me passou pela cabeça.
Meu
plano era ficar aqui só até me recuperar. Mentira, não era bem
isso. Eu achava que teria que ir embora.
E
aí, se era para ir embora de qualquer jeito, melhor ir logo, com
elegância, do que esperar me expulsarem. Temos classe, sabe?
Por
que não avisou logo que eu podia morar aqui de vez?
Satoru
abriu a porta, relutante, e eu me esgueirei para fora. Então parei,
me voltei para ele e miei: Vem!
E
Satoru entendeu. Para um humano, ele até que tinha jeito com a
língua dos gatos. Hesitou um pouco, mas acabou me acompanhando.
Era
uma noite clara de luar. O bairro estava em silêncio total.
Pulei
para o capô da van prata, encantado em ter minha agilidade
recobrada. Depois saltei de volta para o chão e rolei pra lá e pra
cá, até cansar.
Quando
um carro passou perto, meu rabo se arrepiou todo. O pavor que senti
ao ser lançado pelos ares, a ponto de quebrar um osso, devia ter
ficado gravado no meu corpo. Sem perceber, me escondi atrás de
Satoru, que ria baixinho, me olhando com ternura.
Demos
uma volta pela vizinhança e voltamos para o prédio dele. Parei
diante da porta do primeiro apartamento do segundo andar e miei.
Abre!
Levantei
a cabeça para Satoru, que sorria com os olhos marejados.
— Você
voltou, foi?
Aham,
voltei. Então abre logo essa porta.
— Vai
morar aqui?
Vou.
Mas vamos sair para dar uma volta de vez em quando, tá?
E
foi assim que eu me tornei o gato do Satoru.
Hiro Akiwara, in Relatos de um gato viajante
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