The Mother of God with the Infant Christ (c. 1880-1890), Viktor Vasnetsov
Eu
sei que a maioria das pessoas consideradas inteligentes, e que são
de fato inteligentes — capazes de compreender os mais difíceis
raciocínios científicos, matemáticos e filosóficos —, muito
raramente é capaz de entender uma verdade simples e óbvia, se ela
for de natureza tal que exija que essas pessoas admitam que um
julgamento que formaram sobre alguma coisa, às vezes com grande
esforço — um julgamento do qual têm orgulho, que ensinaram a
outros e com base no qual organizaram toda a sua vida —, possa
estar errado. Portanto, tenho poucas esperanças de que os argumentos
que estou apresentando sobre a perversão da arte e do gosto em nossa
sociedade venham a ser aceitos ou mesmo seriamente discutidos.
Contudo, vou apresentá-los, já que esse estudo me deu a convicção
de que quase tudo que é considerado arte, a boa e total arte de
nossa sociedade, não é verdadeira nem boa, nem é o total dela e
nem mesmo é arte, em absoluto, mas somente uma falsificação. Essa
afirmação, eu sei, é muito estranha e parece paradoxal. Porém, se
reconhecemos uma vez como verdadeiro que a arte é uma atividade
humana por meio da qual algumas pessoas transmitem seus sentimentos a
outras, e não é a servidão da beleza, a manifestação de uma
ideia, e assim por diante, tal declaração tem que ser aceita. Se
for verdade que a arte é uma atividade por meio da qual um homem,
tendo vivenciado um sentimento, transmite-o conscientemente a outros,
devemos inevitavelmente admitir que de tudo aquilo que, entre nós, é
chamado de arte das classes superiores — todos esses romances,
contos, dramas, comédias, pinturas, esculturas, sinfonias, óperas,
operetas, balés etc., que passam por obras de arte — haverá no
máximo um em 100 mil que tenha se originado de um sentimento
experimentado pelo seu autor; o restante são obras fabricadas,
falsificações artísticas nas quais o empréstimo, a imitação, o
efeito e o desvio substituem o contágio pelo sentimento. Pode-se
provar que a proporção entre verdadeiras obras de arte e essas
falsificações é de um para centenas de milhares, ou até menor,
com o seguinte cálculo. Eu li em algum lugar que existem 30 mil
pintores-artistas só em Paris. Deve haver o mesmo número na
Inglaterra, o mesmo na Alemanha, o mesmo na Rússia, na Itália e em
alguns países menores combinados. De forma que deve haver, ao todo,
cerca de 120 mil pintores na Europa e a mesma quantidade de músicos
e a mesma quantidade de escritores-artistas. Se essas 300 mil pessoas
produzirem pelo menos três obras de arte por ano (e muitas produzem
dez ou mais), a cada ano será produzido um milhão de obras de arte.
Quantas houve nos últimos dez anos, e quantas em todo o período
desde que a arte das classes superiores se separou da arte popular?
Milhões, obviamente. E, no entanto, quem, entre os maiores
conhecedores de arte, recebeu de fato uma impressão de todos esses
supostos trabalhos artísticos, ou pelo menos veio a saber de sua
existência? Sem falar no povo, que não tem sequer ideia dessas
obras, a classe alta não deve conhecer nem mesmo um milésimo de
todas elas e não se lembra daquelas que conhece. Todos esses objetos
aparecem à guisa de arte, não produzem nenhuma impressão sobre
ninguém, exceto às vezes uma impressão de divertimento para uma
turba ociosa de ricos, e desaparecem sem traço. Replica-se a isso,
normalmente, que se não fosse esse gigantesco número de tentativas
malsucedidas, não haveria verdadeiras obras de arte. Mas esse
raciocínio é o mesmo que se um padeiro, em resposta à reclamação
de que seu pão não estava bom, dissesse que, se não fosse por uma
centena de pães ruins, não haveria nenhum bem assado. É verdade
que onde há ouro há também muita areia; mas isso não pode de modo
algum servir de pretexto para dizer uma porção de coisas tolas com
o propósito de dizer alguma coisa inteligente.
Estamos
cercados de obras que são consideradas artísticas. Milhares de
poemas líricos, milhares de poemas, de romances, de peças teatrais,
de quadros, de composições musicais aparecem um após outro. Todos
os poemas descrevem o amor, ou a natureza, ou o estado de espírito
do autor, e todos observam métrica e rima. Todos os dramas e
comédias são esplendidamente projetados e interpretados por atores
excelentemente treinados. Todos os romances se dividem em capítulos,
que descrevem o amor e contêm cenas comoventes, expondo os detalhes
verdadeiros da vida. Todas as sinfonias contêm seu allegro,
andante, scherzo e finale, e todas consistem em modulações e
acordes e são tocadas por músicos treinados com muito refinamento.
Todos os quadros, em suas molduras douradas, retratam vividamente
pessoas e todos os acessórios. Mas entre essas obras de variadas
espécies de arte existe uma em 100 mil que não é simplesmente um
pouco melhor do que as outras, mas difere de todo o resto tal como um
diamante difere de vidro. Essa única não pode ser comprada por
nenhum valor, de tão preciosa que é; as outras não só não têm
valor, como são até negativas, porque enganam e pervertem o gosto.
E o pior é que, para um homem com senso de compreensão da arte
pervertido ou atrofiado, elas são exatamente iguais.
A
dificuldade de reconhecer trabalhos artísticos em nossa sociedade é
aumentada também pelo fato de que, nas falsas obras, o valor
superficial não só não é pior, como frequentemente é melhor do
que nas obras verdadeiras. Muitas vezes a falsificação nos atinge
mais do que a obra verdadeira e seu conteúdo é mais interessante.
Como discriminar? Como encontrar essa única obra, que não difere na
superfície de modo algum das centenas de milhares feitas
deliberadamente para parecer com a verdadeira à perfeição?
Para
um homem de gosto não pervertido — um trabalhador, não um morador
da cidade — isso é tão fácil quanto para um animal de faro não
degradado encontrar, entre milhares de pistas na floresta ou no
campo, aquela de que ele precisa. Um animal encontrará sem erro o
que ele necessita; assim também um homem, se suas qualidades
naturais não estiverem pervertidas, escolherá sem erro, no meio de
milhares de objetos, a verdadeira obra de arte de que precisa, que o
contagia com o sentimento experimentado pelo artista. Mas isso não é
assim para aqueles cujo gosto foi arruinado pela educação e pela
própria vida. O sentido de percepção artística está atrofiado
nessas pessoas, e ao avaliar trabalhos artísticos elas precisam ser
guiadas pelo raciocínio e pelo exame, e isso às vezes as confunde,
de forma que grande parte de nossa sociedade é totalmente incapaz de
distinguir uma obra de arte da mais grosseira falsificação. Elas
gastam longas horas em concertos e teatros, ouvindo as obras dos
novos compositores, e consideram seu dever ler os romances novos dos
famosos romancistas e ver os quadros que mostram ou algo
incompreensível ou sempre as mesmas coisas de novo — coisas que
veem muito melhor na realidade; e, acima de tudo, consideram uma
obrigação admirar tudo isso, fazendo de conta que são todas obras
de arte, e passam pelas verdadeiras obras de arte não somente sem
lhes prestar atenção, mas até mesmo com desprezo, simplesmente
porque elas não são contadas como arte em seu círculo.
Um
dia desses eu voltava para casa, de uma caminhada, deprimido. Quando
me aproximava de casa, ouvi o canto de um grande círculo de mulheres
camponesas. Elas estavam saudando e homenageando minha filha, que se
casara e tinha vindo para uma visita. Essa cantoria, com brados e
batidas sobre os alfanjes, expressava um sentimento tão explícito
de regozijo, alegria e energia que sem perceber fiquei contagiado por
ele e me aproximei de casa mais alegre, entrando bem animado e
contente. Descobri que todos da casa, que tinham ouvido esse canto,
também estavam animados. Naquela mesma noite, um músico excelente,
famoso por sua interpretação de peças clássicas, especialmente de
Beethoven, veio nos visitar e tocou a sonata “Opus 101”, de
Beethoven.
Acho
necessário observar, para aqueles que queiram justificar minha
opinião sobre essa sonata dizendo que nada entendo dela, que sou
muito suscetível à música e entendo tudo o que os outros entendem
nessa sonata, assim como em outras obras do último período de
Beethoven, e da mesma maneira que eles. Por muito tempo me preparei
para admirar essas improvisações sem forma que constituem as obras
do último período de Beethoven, mas no momento em que comecei a
tratar o assunto da arte com seriedade e comparei a impressão que
elas me deixam com a impressão musical agradável, clara e forte
produzida, por exemplo, pelas melodias de Bach (suas árias), Haydn,
Mozart, Chopin — que não são deturpadas por complicações e
adornos — ou as do próprio Beethoven em seu primeiro período e,
acima de tudo, com as impressões recebidas das canções folclóricas
italianas, norueguesas e russas, das czardas húngaras e
outras assim tão simples, claras e fortes, aquela certa animação
vaga e quase mórbida tirada das obras do último período de
Beethoven, e que eu invocava artificialmente em mim mesmo, foi
imediatamente destruída.
Quando
a apresentação terminou, todos os presentes, embora fosse óbvio
que estivessem todos entediados, elogiaram ansiosamente a obra
profunda de Beethoven como se fosse uma obrigação, não esquecendo
de mencionar que não haviam entendido esse período tardio antes,
mas agora viam que ele era o melhor. Porém, quando comparei a
impressão causada pelo canto das camponesas, que fora vivenciada por
todos os presentes, com a impressão daquela sonata, os amantes de
Beethoven apenas sorriram com desdém, considerando desnecessário
replicar a uma conversa tão estranha.
E,
no entanto, a canção das mulheres era arte verdadeira, que
transmitia um sentimento preciso e forte, enquanto a sonata 101 de
Beethoven era apenas uma tentativa malsucedida de arte, que não
continha nenhum sentimento definido e, portanto, não contagiava
ninguém com coisa alguma.
Para
o meu trabalho sobre a arte, passei este inverno lendo, com
diligência e grande esforço, os famosos romances e contos de Zola,
Bourget, Huysmans e Kipling, que são elogiados em toda a Europa. E,
nesse meio-tempo, deparei-me em uma revista infantil com uma história
de um escritor totalmente desconhecido sobre os preparativos de
Páscoa pela família de uma pobre viúva. O enredo é o seguinte: a
mãe, tendo obtido com dificuldade um pouco de farinha branca,
colocou-a sobre a mesa para ser sovada e foi em busca de fermento,
pedindo às crianças que não saíssem de casa e tomassem conta da
farinha. A mãe saiu e os filhos do vizinho vieram correndo até a
janela, gritando para as crianças da casa que saíssem para brincar.
As crianças, esquecendo a ordem da mãe, correm para fora e começam
a brincar. Ela volta para casa com o fermento e encontra uma galinha
em cima da mesa, atirando para o chão de terra o que ainda havia de
farinha, para que seus pintinhos a catassem.
Desesperada,
dá uma bronca nos filhos. As crianças choram. A mãe fica com pena
deles, mas já não há farinha branca, e então, para alegrar as
crianças, decide fazer um kulich de farinha de centeio
peneirada, glaçá-lo com clara de ovo e colocar ovos em torno. “Pão
de centeio eu adoro, sou franco; ele é o avô do pão branco”,
recita a mãe para os filhos, a fim de consolá-los por não terem um
kulich feito de farinha branca. E as crianças num instante
vão do desespero a um feliz enlevo; cada uma repete o provérbio e
espera o kulich com a maior alegria.
E
o que tem isso? A leitura dos romances e contos de Zola, Bourget,
Huysmans, Kipling e outros, com os assuntos mais provocantes, não me
tocou nem por um momento. Antes, eu me sentia irritado com os autores
o tempo inteiro, tal como você fica irritado com alguém que o
considera tão ingênuo que nem ao menos esconde o método pelo qual
quer apanhar você. Desde as primeiras linhas, vê a intenção por
trás do texto e todos os detalhes se tornam supérfluos — você
fica entediado. Acima de tudo, sabe que o autor nunca teve sentimento
algum, exceto o desejo de escrever um conto ou um romance. E,
portanto, não resulta disso nenhuma impressão artística. Porém,
eu não conseguia me desprender da história do autor desconhecido,
que falava das crianças e dos pintinhos, porque fiquei imediatamente
contagiado pelo sentimento que ele obviamente tinha vivenciado e
transmitido.
Na
Rússia, temos o pintor Vasnetsov. Ele pintou os ícones da catedral
de Kiev. Todos o louvam como fundador de algum tipo de arte cristã
de gênero sofisticado. Ele trabalhou nesses ícones durante décadas
e recebeu dezenas de milhares de rublos. Todos esses ícones são más
imitações de imitações de imitações e não contêm um traço de
sentimento. E o mesmo Vasnetsov desenhou uma ilustração para o
conto de Turguênev “A codorniz” (que fala sobre um pai que matou
uma codorniz na presença de seu filho e então se arrependeu disso),
retratando o menino dormindo, com o lábio superior saliente, e,
acima dele, como num sonho, a codorniz. E essa ilustração é uma
verdadeira obra de arte.
Na
academia inglesa, duas pinturas aparecem lado a lado. Uma é de J.C.
Delmas e retrata a tentação de santo Antônio. Ele está de
joelhos, rezando. Atrás dele está uma mulher nua e alguns animais.
Pode-se ver que o artista gostou muitíssimo da mulher nua, mas não
deu a menor atenção a Antônio, e que a tentação não só não o
amedronta (ao artista), como é, ao contrário, muito agradável a
ele. E, portanto, se existe arte nesse quadro, é muito ruim e falsa.
No mesmo catálogo há, ao lado desse, um pequeno quadro de
Langley,[99] mostrando um garoto mendigo que aparentemente foi
convidado a entrar por uma mulher que se compadece dele. O menino,
enfiando os pés nus pateticamente sob o banco, está comendo; a
mulher o está olhando, provavelmente perguntando-se se ele quer
mais; e uma menina de seus sete anos, com a cabeça apoiada na mão,
está observando com atenção e seriedade, sem tirar os olhos do
menino faminto, obviamente percebendo pela primeira vez o que é a
pobreza, o que é a desigualdade entre as pessoas, e, pela primeira
vez, fazendo-se a pergunta: por que ela tem tudo, enquanto esse
garoto está descalço e com fome? Ela sente ao mesmo tempo pena e
alegria. E ela ama o garoto e o bem... Sente-se que o artista amava
essa garota e o que ela amava. E esse quadro de um pintor que,
acredito, é pouco conhecido é uma bela e verdadeira obra de arte.
Lembro-me
de ter visto o desempenho de Rossi em Hamlet,[100] peça em que a
tragédia em si e o ator que faz o papel principal são considerados
pelos nossos críticos a última palavra em arte dramática. E no
entanto experimentei, durante todo o tempo da apresentação, tanto
pelo conteúdo da peça quanto pelo desempenho, aquele sofrimento
especial causado por falsos simulacros de obras artísticas. Li
também, recentemente, uma descrição do teatro de um povo selvagem,
os voguls. Uma das pessoas que estavam presentes descreve a
seguinte apresentação: um vogul alto e um baixo, ambos vestidos com
pele de rena, representam uma rena e seu filhote. Um terceiro
representa um caçador com um arco e calçados de andar na neve. Um
quarto imita o canto de um passarinho, avisando a rena do perigo. O
drama consiste na perseguição que o caçador faz à rena e ao
filhote, seguindo-lhes os rastros. Os animais correm para fora da
cena e voltam correndo. A apresentação se dá em uma pequena tenda
circular. O caçador chega cada vez mais perto de sua presa. O
filhote está exausto e se gruda à mãe, que para a fim de
descansar. O caçador os alcança e faz pontaria. Nesse momento, o
passarinho pia, avisando a rena do perigo; os animais fogem.
Novamente a perseguição, novamente o caçador se aproxima,
alcança-os e lança a sua flecha. A flecha atinge o filhote. Incapaz
de correr, o filhote se encosta na mãe, e esta lambe seu ferimento.
O
caçador coloca outra seta no arco. Os espectadores, segundo a
descrição do narrador, estão imóveis como pedras; podem-se ouvir
fundos suspiros e até mesmo choro. E eu sinto, somente por essa
descrição, que essa é uma verdadeira obra de arte.
O
que estou dizendo será tomado como um paradoxo louco, com o qual
alguém só pode se espantar, mas não posso deixar de dizer o que
penso: a saber, que as pessoas do nosso círculo, algumas das quais
escrevem versos, contos, romances, sinfonias, óperas e sonatas,
pintam vários tipos de quadro e fazem esculturas, enquanto outras
ouvem e olham essas coisas e outras, ainda, avaliam e criticam isso
tudo, discutem, denunciam, triunfam, erigem monumentos umas às
outras, e assim fizeram no curso de várias gerações; que todas
essas pessoas — artistas, público e críticos —, com
pouquíssimas exceções, nunca experimentaram — salvo na infância
e na juventude, antes que ouvissem qualquer explicação sobre arte —
aquele sentimento singelo, conhecido do homem mais simples e mesmo
das crianças, de ser contagiado pelos sentimentos de outrem, algo
que faz com que nos alegremos com a alegria do outro, soframos com
seu sofrimento e misturemos nossa alma à dele, e que constitui a
essência da arte; e que portanto essas pessoas não conseguem
distinguir a arte verdadeira das falsificações e sempre confundem o
que há de pior e mais falso com arte genuína, sem notar a genuína
porque as falsificações são sempre mais chamativas, enquanto a
arte verdadeira é modesta.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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