Sexta-feira,
fim de tarde. Campinas. Eu e Mauro costumávamos pegar o ônibus das
seis. Passar o fim de semana em São Paulo: rever famílias, amigos,
a cidade. Estudávamos na Unicamp, mas voltávamos em todos os finais
de semana.
Sentamos.
Ele
na janela, eu no corredor.
Ambos
com cara de estudante, jeans surrados, cabelos longos, livros,
apostilas, barbas malfeitas, abertos para experiências e ainda com
crenças em utopias.
O
ônibus estava para partir, quando ela entrou com o seu acompanhante
bem mais velho, chapéu de vaqueiro, mal-encarado. Seria um posseiro
ou um matador. Nela, um vestido de linho, cabelos bem tratados,
morenos, escorridos. Pele bem cuidada.
Nossos
olhares se uniram.
Sentaram
na fileira detrás.
Não
sei quem na janela, quem no corredor. E eu não tinha nenhum motivo
para me virar e checar. Somente uma apostila para estudar.
Na
estrada, bancos arriados, luzes apagadas, silêncio. Só eu lia. Já
no primeiro pedágio a vista cansou. Dobrei a apostila. Apaguei a
luz. Me acomodei melhor. Estiquei as pernas. Deitei as costas.
Descansei os braços, deslizando o cotovelo pelo apoio do corredor,
num movimento involuntário.
Quando
senti a frieza da pele do joelho do passageiro de trás no meu
cotovelo. Um esbarrão. Uma passageira. O dela.
Num
ato instintivo, ela o retirou num susto, e corrigi a postura, o
braço, para não invadir o espaço alheio.
Mas
minha pele não se esquecia da dela. Queria conferir novamente a sua
textura, temperatura, forma. Eu não podia, nem devia. Porém, todos
dormiam ao redor.
O
escuro do ônibus era eventualmente cortado por faróis de carros que
vinham na direção contrária. Apenas o teto se iluminava.
Eventualmente.
Escorreguei
desta vez voluntariamente o meu braço para trás. Meu cotovelo
invadiu a área destinada às pernas da passageira do banco traseiro.
Deixei-o lá, solto no ar. Não era uma posição incômoda.
Combinava com a postura de quem busca o descanso. Ofereci.
E
o não virou sim.
Ela
encostou de leve o seu joelho nele.
Senti
novamente a temperatura, a textura. Não a forma. Pois encostou e
tirou. Não bruscamente. Deu um cutucão simpático.
Deixei
o cotovelo à espera de outra provocação.
Que
veio.
Encostou
e tirou. Encostou com mais força e tirou com menor rapidez. Um jogo?
Seu
joelho se divertia com o meu cotovelo. Não brincava. Seduzia.
Namorava. Sua pele também queria conhecer a minha textura e
temperatura.
Ia
e voltava. Esfregava e parava.
Eu
precisava rever o seu rosto. Que desculpa inventar para me virar de
repente? E se o seu acompanhante, posseiro ou assassino, de poucos
amigos, estivesse acordado? E se outros passageiros notassem e me
denunciassem?
Poderia
pedir fogo. Naquela época, fumava-se em ônibus, e estávamos na
fileira de fumantes. Mas Mauro fumou no caminho antes de escurecer.
Saberiam que naquela fileira tinha fogo.
E
tinha.
Poderia
perguntar as horas. Mas teria antes que esconder, sem ninguém
perceber, o meu relógio de pulso. Uma caneta?
Sim,
um estudante, cuja tinta da caneta acabara, que se lembrou de um
pensamento, com o balanço do ônibus e a escuridão dos elementos
que desconcentram, que precisava ser anotado com urgência na
apostila.
É,
uma caneta.
Para
um universitário, fundamental como uma arma para um soldado.
Ainda
sentado, virei apenas a cabeça. Olhei o corredor vazio, os
passageiros apagados. Olhei para o seu rosto. Ela sorriu ao me ver.
Uma dúzia de malícias nos seus olhos. Não descobri se seu
acompanhante, fora do campo de visão, dormia. Ela, há-há… Bem
acordada, brilho no olhar.
“Você
tem uma caneta para me emprestar?”
Nem
se surpreendeu com a pergunta.
Provavelmente,
esperava que eu me virasse e tomasse uma atitude, apenas para que nos
víssemos e checássemos se estávamos bem alertas e conscientemente
nos tocando através de um joelho desnudo e um cotovelo invasor.
“Hum-hum”,
ela respondeu negativamente e sorriu, como se soubesse que eu não
precisava de caneta.
Ainda
grudei meus olhos nos seus por dois segundos, aqueles dois segundos
que são mais significativos do que muitos séculos.
Voltei
para a minha posição. Recoloquei o meu cotovelo no vazio do espaço
das pernas de trás. E ela, nada. Nada. Nada. Até encostar o seu
joelho nele e, desta vez, não tirar.
Escorreguei
mais o braço, e agora era a pele do meu antebraço que roçava seu
joelho, que passou a me apertar, acariciar.
Ela
se acomodou, se largou, agora era a perna que se encostava em todo o
meu braço. Eu o movia com movimentos circulares sutis, ainda apoiado
no encosto, e ela esfregava sua perna nele, apoiava, pressionava,
escorria.
Enfim,
deixei cair meu braço para trás.
Ela
abriu as pernas e o pressionou com os joelhos com força, como se o
escondesse entre eles e o quisesse só para si. Minhas mãos
passearam pela batata de sua perna, e ela se inclinou mais. Pele
lisa, seda, linho, fria, que quando eu subia a mão, esquentava.
Estiquei
o braço para trás. Ela o apertou com a força de suas pernas. Girei
o braço e encaixei a minha mão dentro do seu vestido. Abandonei-a
por ali, intrusa, aquecida por suas coxas.
Ela,
em movimentos mínimos, a namorou.
Se
consumiu.
Meus
dedos passearam pela penugem rala.
Provocaram.
Tocaram.
Ela
deixou.
Ela
quis.
E
ganhou, enquanto todos dormiam pesadamente.
Entramos
na cidade. As luzes agora invadiam as janelas. Meu braço estava de
volta. Cheirei a minha mão.
Rodoviária
da Barra Funda. Todos despertos. Portas abertas. Deixei ela e o
acompanhante passarem, e fui atrás com o amigo. Descemos do ônibus
nos olhando discretamente.
Na
fila do táxi, eles exatamente na nossa frente. Nos namoramos
secretamente, sorrindo e em pânico. Algo indicava que nunca mais nos
veríamos. Vi desta vez: seus joelhos eram os mais lindos de todos.
Seu
acompanhante entrou no táxi primeiro. Ela se virou para mim e olhou
um adeus triste. Desesperado. Sem desfecho.
E
se foram.
Não
comentei nada com Mauro, com quem rachei o táxi.
Pelo
caminho, cheirei outras vezes a mão.
Nunca
mais a vi. Por onde anda? O que será que fez da sua vida? E como
estarão os seus joelhos? Desde então, concluí: são as partes mais
lindas de uma mulher.
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz
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