Parece
que envelheço em semanas, não em horas. Os dias passam rápido
nesse marasmo em que o calendário perdeu todo o sentido. O porteiro
me cumprimentou com quatro dentes a mais nessa manhã, entregou a
correspondência em mãos. Então soube que estávamos em dezembro, o
livro de ouro aberto na mesa da portaria, ao lado da central de
interfone. Ignorei. Retribuí apenas com o obrigado habitual,
bom-dia. “Fique com Deus, seu Natan”, ele fez questão de falar.
Cada vez que ouço Deus saltar da boca de uma pessoa que não parou
para pensar na existência Dele por mais de cinco minutos na vida,
fico irritado. Hoje em dia Deus e Jesus são sinônimos, e é
impossível pagar um táxi, dar uma esmola, ou se despedir da
faxineira sem que uma dessas entidades abstratas invada seus ouvidos.
Dizem Deus, Jesus, como poderiam dizer Meu Amo, Senhor, Alah, Adonai.
Falam Deus o abençoe e acreditam que têm esse poder, evocar a
piedade de um ser supremo para uma pessoa que lhe fez um pequeno
favor.
Ana
era religiosa, ainda mais depois da doença, das doenças, e combati
esse fanatismo silenciosamente dentro da minha própria casa durante
nossos 46 anos de casamento. Antes, sempre, judia, no final,
inexplicavelmente, católica. Na mesma frase em que me contou que
estava com câncer nos pulmões acrescentou que Deus sabia o que
estava fazendo, e aquilo me irritou tanto que, em vez de confortá-la,
gritei para ela esquecer aquela merda de Deus.
Esperei
que ela chorasse, respondesse, mas. Nada. Os olhos se diluindo em
piedade, as lágrimas represadas não desceram, e ela ergueu a
cabeça, segurou minhas mãos e me pediu calma. Calma, pensei, mas
você tem câncer! Continuou, como se tivesse me ouvido:
“Eu
estou em paz. Nunca me senti tão em paz, Natan.”
E
nos olhos negros dela, absurdamente brilhantes com aquela poça
d’água que não desabava, eu via que ela estava mesmo em paz,
calma, obscenamente calma. Mas Ana não estava apenas com câncer,
estava esquecida, e aquela felicidade imunda que ela encenava só me
apontava que, quando o câncer chegou, Ana já não era ela mesma.
Ela me puxou para um abraço e finalmente chorei, por nós dois. Ana
me reconfortou, puxando minha cabeça para o seu ombro, a mão
espalmada na minha nuca:
“Ficaremos
bem.”
Flávio Izhaki, in Amanhã não tem ninguém
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