terça-feira, 28 de março de 2023

Depois a louca sou eu

Um dos principais erros do ansioso é procurar “veneno” em seus parceiros amorosos. Aquela pessoa solar não tem nenhuma graça. Aquela pessoa equilibrada, solidificada, bonançosa, que realmente acredita em coisas a ponto de ficar bem porque acredita em coisas (tipo “esse livro do Osho mudou a minha vida”), é chata. E, sim, concordo com você, meio limitada.
Mas pense bem: você é um trem fantasma descarrilado cujo condutor está de ponta-cabeça. Claro que, se outro trem fantasma descarrilado com condutor de ponta-cabeça cruzar seu caminho, vai ser uma explosão louca de sabores densos e picantes. Você morrerá inúmeras vezes, mas terá valido a pena. E a coisa toda vicia num grau, que periga você levantar feito um joão bobo, lá do trilho mesmo, ensanguentado, e implorar mais. E depois mais um pouco. O sexo entre dois seres atormentados e pré-suicidas é o único sexo possível, o resto é amorzinho para fazer nenê.
Só que para tudo, chega. E é nessa hora do “para tudo, chega” que muitos arrumam o famoso cônjuge “ele faz muito bem pra mim”. Aquele que não é o sexo do ano, não é a longa conversa “vamos rir até quatro da manhã de como somos meio infelizes”, mas melhora sua ansiedade, melhora seu pânico, diminui a sua vontade de fazer minicortes pelo seu próprio corpo. Em contrapartida, esse cônjuge “play feliz”, com frequência uma pessoa besta, sempre pronta para correr no parque ou bem-disposta para dar carona a algum velhinho que mora fora do centro expandido, um “gente boa mode on histericamente em paz” ligado na tomada o dia inteiro para purificar o ar da casa, com frequência esse cara é tão sem-sal, mas tão sem-sal, que a única graça e função dele na vida é “ser o parceiro que acalma o doido”. Do doido nós gostamos, já a menina quieta sorridente, o rapaz “peraí que te ajudo enquanto assovio um sambinha”, os civis de um modo geral, nós aturamos porque eles limpam caso o doido suje a nossa sala.
Mas essas pessoas, por não terem “a doencinha”, a doencinha que dá a liga, o veneno entre dois estragadinhos da cabeça, o ponto de encontro espetacular entre duas mentes atormentadas, a maior explosão sexual de todas, essas pessoas não têm graça. Transar com um cara gente boa é legal. Transar com um maluco é o motivo pelo qual inventaram o sexo. Enfim, tudo isso te levará a fugir das encrencas. Mas em círculos.
Você vai dar tempos, intervalos, respiros, construir moradias com esses seres maravilhosos “que te fazem bem”. Mas a quem queremos enganar que isso vai durar? Ou melhor, isso vai durar pra cacete, talvez seja a única coisa que realmente dure na sua vida, mas a quem queremos enganar que você está arrematado e saciado? A quem queremos enganar que as palavras “pleno” e “feliz” não te fazem torcer os olhinhos como descrentes paninhos de chão que nem depois da água sanitária deixaram de ser sujos? A quem você quer enganar que não vai pular a cerca? Não vai encher a cara ou tomar um tarjinha-preta de tão insuportável que está ser felizinho e ter arrumado esse cônjuge-mãe? Felicidade só existe quando é “inha”. Porque “feliz pra cacete” dá uma tristeza enorme.
Enfim, se é veneno o que você busca nas relações, sua vida será preenchida, assim como a minha, por doces rapazes alucinados, especialistas em enxergar a própria loucura refletida na consorte do mês. Eles vão terminar com você por mensagem de texto dizendo: “não dá, você é louca”, e você vai ficar supertensa, achando que eles têm razão… Daí, quando estiver tomando remédios fortes por mais de um ano, você vai descobrir que a mensagem foi enviada do manicômio onde os fofos estavam internados. Então, repete comigo: “louco é o outro”.
Vejamos alguns dos meus casos. Tive um namorado que odiava minhas bolsas. Ele sempre me dizia: “você é bonita e tal, mas falta feminilidade”. E daí ele ia comigo comprar bolsas. Eu escolhia uma coisa horrorosa, cheia de franjas e brilhos e pedras, e ele dizia: “é, acho que pode te deixar mais feminina”. Um dia ele terminou o namoro dizendo que eu era extremamente macha.
Eu gostava desse namorado, então fiquei péssima e por meses me culpei. Minhas amigas falavam: “suas mãos são pequenas e macias, você usa batom rosinha, passa perfume para ficar sozinha em casa, você é supermocinha, esse cara que é maluco”. Mas não tinha jeito. Comecei a achar que o problema estava na minha falta de feminilidade, e cheguei a sonhar, mais de uma vez, que tinha um pênis e que o cortava e jogava para que minha cachorra o trouxesse de volta.
Esse namorado, vamos chamá-lo de Daniel (adoro que esse é exatamente o nome dele e eu estou realmente expondo a criatura, dane-se), dizia que minha dificuldade em usar salto alto estragou nosso romance. Eu sempre preferi sapatilhas fofas e confortáveis. Não era tipo um chinelão da tia Cidinha, era uma sapatilha que tinha lá seus mistérios, tachinhas ou bolinhas, ou deixava levemente à mostra unhas pintadas, vai vendo. Mas ele via em mim um Kichute, não tinha jeito.
Um dia me enchi de pulseiras e brincos e colares pesados (eu andava na rua fazendo tanto barulho que todo mundo olhava achando que era o realejo com o periquito da sorte), meti um salto agulha gigante (que me faria frequentar a fisioterapia por semanas), lancei um batom vermelho na boca, borrifei meio litro de perfume caro no meio dos seios e em outras áreas estratégicas, mandei ver num decotão e fui até a casa dele. Ele riu por um bom tempo (de fato eu estava ridícula, parecendo um requeijão fechado a vácuo, tão colada era a roupa) e me pediu que “tomasse cuidado para não escorregar no piso da casa dele”. E ficou olhando para o chão, cheio de amor, querendo que eu “entendesse algo sem que ele precisasse falar”. Achei que era algo como “vai, fica de quatro nesse piso, sua gata feminina louca”, mas era pior: ele queria que eu notasse como o piso da casa dele brilhava.
Foi quando ele me contou de Larinha, moça rica do interior de Minas a quem acabara de conhecer. Ela estava em São Paulo para estudar “design de sabonetes”. Era rica: um ponto. Era caipira: dois pontos. Tinha uma profissão cretina de moças ricas e caipiras que no fundo não sabem fazer uma caralha da vida e fingem fazer algo até que possam enfim exercer a única função que realmente importa para elas que é ser mulher de homem rico para perpetuar a riqueza da família: três pontos. E tinha descoberto um troço que fazia “reviver os tacos de madeira” e tinha, naquela manhã, esfregado a maravilha em toda a casa do Daniel. Ou seja, uma escravinha: cem pontos. Mano, eu podia colocar franjinhas e tachinhas e strass e pedrarias na virilha que aquele cara jamais veria “uma mulher feminina” em mim. Ele me disse que eu era louca e que por isso não havia dado certo.
Antes do Daniel, namorei um cara que falava sozinho enquanto dormia. Vamos chamá-lo de André (adoro que esse é mesmo o nome dele). Eram altos papos. Ele contava, entre roncos e relinchos, como organizou a sua estante de livros. Primeiro os clássicos, depois os “vivos que valem a pena”, depois os de cinema. Até que um dia ele simplesmente parou de dormir. Não dormiu dois dias, daí viraram cinco dias, daí viraram nove.
Ele usava as madrugadas para ler livros ao mesmo tempo que via filmes ao mesmo tempo que organizava a área de trabalho do computador ao mesmo tempo que falava com sete pessoas pelo inbox do Facebook ao mesmo tempo que baixava músicas ao mesmo tempo que… Numa dessas conheceu uma mulher igual a ele e os dois ficaram várias madrugadas inteiras se falando por todas as infinitas plataformas de internet.
Um dia pedi a ele que voltasse a dormir na casa dele porque estava puxado manter em meu apartamento um homem que não dormia havia dez dias e ficava com todas as luzes acesas, TV e micro-ondas fazendo barulho, e me traía virtualmente. Ele fez as malas, me chamou de “muito ansiosa, precisa aprender a relaxar”, e assim acabou.
Anos depois comecei a namorar o Carlos (vamos chamá-lo por seu nome verdadeiro). Ele me dizia diariamente que eu era louca e que teríamos que terminar, mas… 1) gostava de chorar nu na minha varanda logo depois que a gente transava porque percebia que um dia seu pai morreria; 2) me levou a uma galeria de arte e, ao ver a dona do lugar, com quem “tinha uma relação estremecida”, saiu correndo e me largou lá por meia hora, e depois me deu um esporro porque não o esperei voltar quando estivesse mais calmo; 3) acordava de madrugada para tentar desemperrar janelas que não estavam emperradas; 4) só colecionava arte de gente que já tinha morrido porque “vivo não sabe o que está fazendo”; 5) sofreu um sequestro-relâmpago com outra mulher e, quando os libertaram, me ligou para que eu fosse buscá-los.
Namorei também o Guto, que “odiava criança, odiava morar junto, odiava trabalhar, odiava namorar, odiava cinema, odiava show, odiava beijar na boca toda hora” e terminou comigo porque era impossível me agradar. E, por favor, vamos dar ao Gabriel o prêmio “melhor namorado louco que terminou comigo dizendo que a louca era eu”. Gabriel não aguentava mais sentir que eu o estava observando, “querendo escrever sobre ele”, enquanto ele apenas bebia água ou fazia xixi. Disse que começou a se “autonarrar” vinte e quatro horas por dia porque imaginava que eu passava vinte e quatro horas por dia observando todos os seus movimentos para depois escrever um livro sobre ele. Kikito egocêntrico para ele. Palma de Ouro ególatra para ele. E o pior é que ele tinha razão.

Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu

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