domingo, 26 de fevereiro de 2023

Hemisférios

Há três dias eu estava em Lisboa.
Lá, fevereiro é mês de esticar as meias de lã até os joelhos e colocar os braços para fora da janela, tentando concluir se o casaco pode ser curto ou se é melhor ser longo, tendo em vista meu termômetro eternamente tropical. É mês para contar quanto tempo falta para o frio se afastar, permitindo que os braços e as pernas voltem a ver as ruas.
Mas cai a noite em fevereiro e os cheiros são bons. O cheiro da sopa que depois de tantos anos tornou-se bem-vinda, o cheiro do vinho tinto que desde que se tornou permitido sempre foi tão bem-vindo e o cheiro do cabelo da miúda, tão curiosamente bem-vinda, no beijo roubado de boa-noite.
O pouco que verdadeiramente aquece vem dele: braços seguros e xícaras de chá. É frio demais e é bom por ser exatamente assim.
Há dois dias estou em São Paulo.
Aqui, fevereiro é mês no qual não se abre a gaveta das meias. Mês de abrir a janela e olhar para o céu, tentando concluir se dá para sair às 14h ou se é melhor esperar até o sol baixar às 16h. É mês para se perguntar quando chegará uma trégua, um vento fresco, uma chance de comer massa com molho branco.
Mas a noite cai em fevereiro e os cheiros são bons. O cheiro da chuva de verão, tão assustadora quanto bem-vinda, o cheiro do repelente de mosquitos, que é cheiro de infância e de férias, cuja memória se sobrepõe à dos insetos, tão pouco bem-vindos. O cheiro do suor no pescoço das sobrinhas, da grande e da pequena, invariavelmente bem-vindas.
O pouco que refresca vem deles: meu pai se aproximando com copos de cerveja, minha mãe se aproximando com estrelas de carambola. É quente demais e é bom por ser exatamente assim.
Deve ser isso que chamam de sorte.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

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