quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Capítulo catorze | A terra fechada

A lua anda devagar mas atravessa o mundo.
Provérbio africano –

Por fim, o funeral do Avô. Incompleto, mas acontecendo, pesado e inevitável. Sem morto e sem corpo, mas com cerimónia e pompa. Decidiram que houvesse enterro para desempate de opinião. Parte dos familiares já se impacientava. Uns queriam regressar e necessitavam partilhar da despedida do mais-velho dos Malilanes. Necessitavam nem que fosse da metade de um adeus.
A Ilha inteira enche o cemitério. As carpideiras estão à entrada semeando lacrimosos cantos, enquanto os familiares se enfileiram de ambos lados do portão. Espera-se o coveiro para iniciar a derradeiração.
O caixão, contudo, ainda está em casa. E lá, na sala sem tecto, o corpo de Mariano ainda resta fora do caixão, à espera de um há-de-vir. O Avô aguarda em exclusiva companhia de sua esposa, Dulcineusa. Só depois de abrirem a cova e encaminharem as primeiras bênçãos, só então o tractor irá buscar Dito Mariano.
Por fim, Curozero Muando dá entrada no cemitério, arrastando a pá pelo chão. Apesar do desprendimento há nele uma certa dignidade: afinal, ele é o único coveiro de Luar-do-Chão. Vai abrindo alas entre a cerimoniosa multidão, cantarolando a canção: – Juro, palavra de honra, sinceramente, vou morrer assim.
Apaga o cigarro no cabo da pá, cospe nas mãos a preparar-se para a árdua tarefa. Abstinêncio sugere a meu par: – Vá lá pedir que não cante aquela canção...
O coveiro levanta a pá com um gesto dolente.
O metal rebrilha, fulgoroso, pelos ares, flecha rumo ao chão. Contudo, em lugar do golpe suave se escuta um sonoro clinque, o rasposo ruído de metal contra metal. A pá relampeja, escoiceia como pé de cavalo e, veloz, lhe escapa da mão. Meu espanto se destamanha: seriam faíscas que saltaram? Ou fosse o pássaro ndlati despenhando-se no solo terrestre? Certo é que a pá tinha embatido em coisa dura, tanto que a lâmina vinha entortada. Curozero Muando mira e remira o instrumento, sacode a cabeça e passa os olhos pelos presentes como se esperasse instruções. Meus tios, porém, permanecem mudos, em afinado calafrio. Uma nuvem pesa sobre o lugar.
O coveiro decide abrir uma cova mais ao lado. Um rumor percorre os presentes. Curozero, transpirado, afasta-se uns passos e recomeça a batalha contra o chão.
Em vão. Também ali lhe surge, à flor da terra, uma pedra intransponível. Alguém dá ordem: que se intente uma terceira cova mais além. De novo a pá raspa em superfície dura. O Tio Ultímio avança, peremptório, e retira a pá das mãos do coveiro.
Dá-me esse focholo! Determinadamente, ele lança a pá de encontro ao chão. Mais uma vez a pá embate em obscura rocha.
Um arrepio percorre a alma de todos. Chamam o coveiro à parte e perguntam: – O que se está a passar?
Não sei, patrões, nunca vi uma coisa assim. Parece a terra se fechou.
Como é que se fechou? – Não sei, estou muito confuso.
Cava lá, vai para além e cava lá, perto da árvore.
O coveiro dirige-se para junto da frangipaneira, num canto do cemitério. De novo, ele enfrenta o chão. Uma vez mais se escuta a metálica colisão, a anunciar o intransponível substrato. Aumenta o desespero.
De repente, meu pai, fora dos eixos, desata a vociferar: não se devia cavar com um instrumento de metal. Isso feria a terra. Dito isto, ele se ajoelha e desata a cavar com as mãos. Escava com desespero, babando-se com o esforço. Em pouco tempo, seus dedos ficam em sangue. Meu pai se desespera no vivo da carne, gemendo e praguejando. A terra que amontoa vem avermelhada de sangue. Até que o pé de Abstinêncio lhe suspende o gesto. O Tio sentencia: – Pára com isso, só está a piorar as coisas! Tombado assim, sem os devidos encaminhamentos, o sangue é um veneno conspurcando o falecido e mais toda a família. Os nervos afIoram, meus tios se engalfinham: – Isto é feitiço, meu irmão. Isto é resultado de feitiço.
Feitiço contra quem? Contra mim certamente não é.
Pois então contra quem é?
Contra nós, porra. Contra nós.
Como contra nós? Fale por você, Abstinência.
Foi sua culpa, Ultímio, você é que traiu os mandamentos da tradição.
Que mandamentos, porra?
Encheu-se sozinho lá no governo. Esqueceu a família, Ultímio.
A discussão se suspende, o coveiro está de regresso, ombros circunflexos.
Então, conseguiu? Ele abana a cabeça, pesaroso. A boca dele sofre de má memória: esquece-se, invariável, de fechar. Tinha sondado as redondezas, à procura de terreno cavável, capaz de receber sepultura. Sempre sem resultado. Curozero aconselha-nos a recolhermos a casa que ele vai resolver o problema, vai continuar tentando. Passará o terreno a pá fina.
Amanhã, os excelentíssimos chegam e já encontram uma completa cova toda escavadinha.
Para uma promessa, a sua voz é demasiado trémula. Com um gesto vago, ele nos chama mais perto. E sugere: – Os senhores, no enquanto, devem organizar uma vigilância. Aqui roubam-se os mortos.
Pagamos a um polícia – disse o Tio Ultímio. – Eu pago, podem deixar comigo.
Isso não chega, meus amigos – responde o coveiro. – O senhor não conhece estas vizinhanças daqui. Aqui é preciso cimentar o chão. Senão os gajos vão lá em baixo, escavam a terra para irem buscar os caixões.
Ainda não temos cova e já estamos a pensar na defesa da campa? Somos interrompidos pela inesperada chegada de Nyembeti. A irmã do coveiro, submissa, fica enrolada em silêncio e respeito. Só depois entrega um molho de notas a Ultímio. O que ela diz é imperceptível para todos nós, excepto para Curozero. É ele que, contrariado, traduz a fala da irmã: – Teka mali yako. É isso que ela está dizer. Está a devolver o seu dinheiro.
O Tio Ultímio está tão surpreso quanto irritado. Os ombros lhe sobem, o tom da voz se militariza. Aponta para Curozero Muando e baixa sentença: – Amanhã quero isto resolvido.
Não recebo ordens nem do senhor nem de pessoa nenhuma.
Todos se entreolham, admirados. O coveiro perdera, de súbito, o ar subservidor? Olhando Curozero Muando, não há sombra para a dúvida. O homem fala, dando bicos aos pés. Ao serviço dos outros tinha trabalhado sempre. Dos outros, parecia. Porque ele trabalhara, sim, ao serviço da vida.
A minha única patroa é a vida.
Ultímio ainda profere umas tantas ameaças antes de virar costas. Meus outros tios retiram-se, a moça também se afasta. Sou o único que fico, fazendo companhia a Curo zero Muando. Fazendo companhia é uma força de expressão porque o coveiro não pára. Está agitado, parece um javali farejando o chão. Depois, ele se detém, sentado sobre o muro. Aproximo-me, mas não falo. Esse o modo de mostrar respeito. E espero pela sua fala, sem imposição de pressa. Por fim, ele se manifesta: – Vou-lhe dizer, agora que estamos os dois. Para mim isso é vingança.
Vingança de quem? O coveiro confirma se estamos sós e explica: vingança do chão sobre os desmandos dos vivos. Eu que pensasse na quanta imundície estavam enterrando por aí pelos desamundos, sujando as entranhas, manchando as fontes. Dizem que até droga misturaram com os areais do campo. O que estava sucedendo naquele cemitério era desforra da terra sobre os homens.
Desforra da terra? – perguntei.
Não sabe? A terra morre como a pessoa.
O que se passava era, afinal, bem simples: a terra falecera. Como o corpo que se resume a esqueleto, também a terra se reduzira a ossatura. Já sem ombro, só omoplata. Já sem grão, nem poeira. Apenas magma espesso, caroço frio.
Mas isso não tem nenhum cabimento.
Aqui cabe tudo, meu amigo. Eu já lhe disse: você anda a apanhar pulga só com um dedo.
Grande culpa vinha da guerra, continua o coveiro. Soterraram muita gente baleada, o chumbo transvazara dos corpos enterrados para o chão. Agora já não havia cova, nem fundo. Já nem terra poderíamos extrair da terra. É vingança da terra, repetia.
Lá ao longe passa o vulto de Nyembeti envergando negras vestes sobre a pele escura. Os mosquitos, em nuvem, me avisam: é hora de me retirar. Mas Curozero Muando ainda me quer dizer qualquer coisa. Fala em surdina, mão em concha sobre o rosto.
Há bocado falei mal com seu tio. Nem sei o que me passou...
É natural, você está nervoso, Curozero.
É essa porcaria que ele está fazendo com Nyembeti. Lhe pergunto: dinheiro compra uma vida? – Fique calmo, Curozero. Esqueça o Tio Ultímio.
É que um morto ainda podemos enterrar. Mas o medo, isso não se pode enterrar.
Não tem que ter medo, meu irmão.
Você é que já esqueceu. O medo, aqui, é o primeiro ensinamento.
Mas tem algum motivo para ter medo?
Mas será que você não vê, será que é mais cego que um nó? Ou só tem olhos para espreitar a irmã do outro?
Espreitar a irmã? Mas eu nem olhei nunca... – Desculpe-me, eu falei só por falar. São os nervos que me autorizam a falar indevidas coisas.
Deixássemos esses meandros. O problema agora era o impossível enterro. Eu que fosse para casa e matutasse bem. Porque a embrulhada não era apenas a recusa da terra em se abrir. Era o morto que se negava a entrar. Isso era o outro motivo do medo. Tentei deitar água na fervura: – Ora, não leve a sério, Curozero. Você conhe ce bem o Avô Mariano! Para Dito Mariano, com sua grande preguiça, morrer devia ser muito trabalhoso. Acontecia apenas que se demorava a encetar o último passo.
Em vida quando o esperávamos ele aparecia? Pois agora quando desesperamos ele também não desaparece.
Já em casa, um alvoroço me revolve a alma. A imagem de meu pai escavando em desespero me persegue. De noite até sonho. Sobre a extensão imensa de um chão nu e vermelho se veem dezenas de buracos que ele havia aberto. Meu velho, Fulano Malta, ergue a cabeça e proclama: – Não estou abrindo sepulturas para o falecido, seu respeitoso Avô. Estou-me enterrando a mim, vivo, enquanto tenho forças.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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