A
lua anda devagar mas atravessa o mundo.
– Provérbio
africano –
Por
fim, o funeral do Avô. Incompleto, mas acontecendo, pesado e
inevitável. Sem morto e sem corpo, mas com cerimónia e pompa.
Decidiram que houvesse enterro para desempate de opinião. Parte dos
familiares já se impacientava. Uns queriam regressar e necessitavam
partilhar da despedida do mais-velho dos Malilanes. Necessitavam nem
que fosse da metade de um adeus.
A
Ilha inteira enche o cemitério. As carpideiras estão à entrada
semeando lacrimosos cantos, enquanto os familiares se enfileiram de
ambos lados do portão. Espera-se o coveiro para iniciar a
derradeiração.
O
caixão, contudo, ainda está em casa. E lá, na sala sem tecto, o
corpo de Mariano ainda resta fora do caixão, à espera de um
há-de-vir. O Avô aguarda em exclusiva companhia de sua esposa,
Dulcineusa. Só depois de abrirem a cova e encaminharem as primeiras
bênçãos, só então o tractor irá buscar Dito Mariano.
Por
fim, Curozero Muando dá entrada no cemitério, arrastando a pá pelo
chão. Apesar do desprendimento há nele uma certa dignidade: afinal,
ele é o único coveiro de Luar-do-Chão. Vai abrindo alas entre a
cerimoniosa multidão, cantarolando a canção: – Juro, palavra de
honra, sinceramente, vou morrer assim.
Apaga
o cigarro no cabo da pá, cospe nas mãos a preparar-se para a árdua
tarefa. Abstinêncio sugere a meu par: – Vá lá pedir que não
cante aquela canção...
O
coveiro levanta a pá com um gesto dolente.
O
metal rebrilha, fulgoroso, pelos ares, flecha rumo ao chão. Contudo,
em lugar do golpe suave se escuta um sonoro clinque, o rasposo ruído
de metal contra metal. A pá relampeja, escoiceia como pé de cavalo
e, veloz, lhe escapa da mão. Meu espanto se destamanha: seriam
faíscas que saltaram? Ou fosse o pássaro ndlati despenhando-se no
solo terrestre? Certo é que a pá tinha embatido em coisa dura,
tanto que a lâmina vinha entortada. Curozero Muando mira e remira o
instrumento, sacode a cabeça e passa os olhos pelos presentes como
se esperasse instruções. Meus tios, porém, permanecem mudos, em
afinado calafrio. Uma nuvem pesa sobre o lugar.
O
coveiro decide abrir uma cova mais ao lado. Um rumor percorre os
presentes. Curozero, transpirado, afasta-se uns passos e recomeça a
batalha contra o chão.
Em
vão. Também ali lhe surge, à flor da terra, uma pedra
intransponível. Alguém dá ordem: que se intente uma terceira cova
mais além. De novo a pá raspa em superfície dura. O Tio Ultímio
avança, peremptório, e retira a pá das mãos do coveiro.
– Dá-me
esse focholo! Determinadamente, ele lança a pá de encontro ao chão.
Mais uma vez a pá embate em obscura rocha.
Um
arrepio percorre a alma de todos. Chamam o coveiro à parte e
perguntam: – O que se está a passar?
– Não
sei, patrões, nunca vi uma coisa assim. Parece a terra se fechou.
– Como
é que se fechou? – Não sei, estou muito confuso.
– Cava
lá, vai para além e cava lá, perto da árvore.
O
coveiro dirige-se para junto da frangipaneira, num canto do
cemitério. De novo, ele enfrenta o chão. Uma vez mais se escuta a
metálica colisão, a anunciar o intransponível substrato. Aumenta o
desespero.
De
repente, meu pai, fora dos eixos, desata a vociferar: não se devia
cavar com um instrumento de metal. Isso feria a terra. Dito isto, ele
se ajoelha e desata a cavar com as mãos. Escava com desespero,
babando-se com o esforço. Em pouco tempo, seus dedos ficam em
sangue. Meu pai se desespera no vivo da carne, gemendo e praguejando.
A terra que amontoa vem avermelhada de sangue. Até que o pé de
Abstinêncio lhe suspende o gesto. O Tio sentencia: – Pára com
isso, só está a piorar as coisas! Tombado assim, sem os devidos
encaminhamentos, o sangue é um veneno conspurcando o falecido e mais
toda a família. Os nervos afIoram, meus tios se engalfinham: –
Isto é feitiço, meu irmão. Isto é resultado de feitiço.
– Feitiço
contra quem? Contra mim certamente não é.
– Pois
então contra quem é?
– Contra
nós, porra. Contra nós.
– Como
contra nós? Fale por você, Abstinência.
– Foi
sua culpa, Ultímio, você é que traiu os mandamentos da tradição.
– Que
mandamentos, porra?
– Encheu-se
sozinho lá no governo. Esqueceu a família, Ultímio.
A
discussão se suspende, o coveiro está de regresso, ombros
circunflexos.
– Então,
conseguiu? Ele abana a cabeça, pesaroso. A boca dele sofre de má
memória: esquece-se, invariável, de fechar. Tinha sondado as
redondezas, à procura de terreno cavável, capaz de receber
sepultura. Sempre sem resultado. Curozero aconselha-nos a recolhermos
a casa que ele vai resolver o problema, vai continuar tentando.
Passará o terreno a pá fina.
– Amanhã,
os excelentíssimos chegam e já encontram uma completa cova toda
escavadinha.
Para
uma promessa, a sua voz é demasiado trémula. Com um gesto vago, ele
nos chama mais perto. E sugere: – Os senhores, no enquanto, devem
organizar uma vigilância. Aqui roubam-se os mortos.
– Pagamos
a um polícia – disse o Tio Ultímio. – Eu pago, podem deixar
comigo.
– Isso
não chega, meus amigos – responde o coveiro. – O senhor não
conhece estas vizinhanças daqui. Aqui é preciso cimentar o chão.
Senão os gajos vão lá em baixo, escavam a terra para irem buscar
os caixões.
– Ainda
não temos cova e já estamos a pensar na defesa da campa? Somos
interrompidos pela inesperada chegada de Nyembeti. A irmã do
coveiro, submissa, fica enrolada em silêncio e respeito. Só depois
entrega um molho de notas a Ultímio. O que ela diz é imperceptível
para todos nós, excepto para Curozero. É ele que, contrariado,
traduz a fala da irmã: – Teka mali yako. É isso que ela está
dizer. Está a devolver o seu dinheiro.
O
Tio Ultímio está tão surpreso quanto irritado. Os ombros lhe
sobem, o tom da voz se militariza. Aponta para Curozero Muando e
baixa sentença: – Amanhã quero isto resolvido.
– Não
recebo ordens nem do senhor nem de pessoa nenhuma.
Todos
se entreolham, admirados. O coveiro perdera, de súbito, o ar
subservidor? Olhando Curozero Muando, não há sombra para a dúvida.
O homem fala, dando bicos aos pés. Ao serviço dos outros tinha
trabalhado sempre. Dos outros, parecia. Porque ele trabalhara, sim,
ao serviço da vida.
– A
minha única patroa é a vida.
Ultímio
ainda profere umas tantas ameaças antes de virar costas. Meus outros
tios retiram-se, a moça também se afasta. Sou o único que fico,
fazendo companhia a Curo zero Muando. Fazendo companhia é uma força
de expressão porque o coveiro não pára. Está agitado, parece um
javali farejando o chão. Depois, ele se detém, sentado sobre o
muro. Aproximo-me, mas não falo. Esse o modo de mostrar respeito. E
espero pela sua fala, sem imposição de pressa. Por fim, ele se
manifesta: – Vou-lhe dizer, agora que estamos os dois. Para mim
isso é vingança.
– Vingança
de quem? O coveiro confirma se estamos sós e explica: vingança do
chão sobre os desmandos dos vivos. Eu que pensasse na quanta
imundície estavam enterrando por aí pelos desamundos, sujando as
entranhas, manchando as fontes. Dizem que até droga misturaram com
os areais do campo. O que estava sucedendo naquele cemitério era
desforra da terra sobre os homens.
– Desforra
da terra? – perguntei.
– Não
sabe? A terra morre como a pessoa.
O
que se passava era, afinal, bem simples: a terra falecera. Como o
corpo que se resume a esqueleto, também a terra se reduzira a
ossatura. Já sem ombro, só omoplata. Já sem grão, nem poeira.
Apenas magma espesso, caroço frio.
– Mas
isso não tem nenhum cabimento.
– Aqui
cabe tudo, meu amigo. Eu já lhe disse: você anda a apanhar pulga só
com um dedo.
Grande
culpa vinha da guerra, continua o coveiro. Soterraram muita gente
baleada, o chumbo transvazara dos corpos enterrados para o chão.
Agora já não havia cova, nem fundo. Já nem terra poderíamos
extrair da terra. É vingança da terra, repetia.
Lá
ao longe passa o vulto de Nyembeti envergando negras vestes sobre a
pele escura. Os mosquitos, em nuvem, me avisam: é hora de me
retirar. Mas Curozero Muando ainda me quer dizer qualquer coisa. Fala
em surdina, mão em concha sobre o rosto.
– Há
bocado falei mal com seu tio. Nem sei o que me passou...
– É
natural, você está nervoso, Curozero.
– É
essa porcaria que ele está fazendo com Nyembeti. Lhe pergunto:
dinheiro compra uma vida? – Fique calmo, Curozero. Esqueça o Tio
Ultímio.
– É
que um morto ainda podemos enterrar. Mas o medo, isso não se pode
enterrar.
– Não
tem que ter medo, meu irmão.
– Você
é que já esqueceu. O medo, aqui, é o primeiro ensinamento.
– Mas
tem algum motivo para ter medo?
– Mas
será que você não vê, será que é mais cego que um nó? Ou só
tem olhos para espreitar a irmã do outro?
– Espreitar
a irmã? Mas eu nem olhei nunca... – Desculpe-me, eu falei só por
falar. São os nervos que me autorizam a falar indevidas coisas.
Deixássemos
esses meandros. O problema agora era o impossível enterro. Eu que
fosse para casa e matutasse bem. Porque a embrulhada não era apenas
a recusa da terra em se abrir. Era o morto que se negava a entrar.
Isso era o outro motivo do medo. Tentei deitar água na fervura: –
Ora, não leve a sério, Curozero. Você conhe ce bem o Avô Mariano!
Para Dito Mariano, com sua grande preguiça, morrer devia ser muito
trabalhoso. Acontecia apenas que se demorava a encetar o último
passo.
– Em
vida quando o esperávamos ele aparecia? Pois agora quando
desesperamos ele também não desaparece.
Já
em casa, um alvoroço me revolve a alma. A imagem de meu pai
escavando em desespero me persegue. De noite até sonho. Sobre a
extensão imensa de um chão nu e vermelho se veem dezenas de buracos
que ele havia aberto. Meu velho, Fulano Malta, ergue a cabeça e
proclama: – Não estou abrindo sepulturas para o falecido, seu
respeitoso Avô. Estou-me enterrando a mim, vivo, enquanto tenho
forças.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
Nenhum comentário:
Postar um comentário