quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Gramática do Povo Guató – VIII

Rogaciano era índio Guató. Mas eu o conheci na
condição de bugre. (Bugre é índio desaldeiado,
pois não?) Ele andava pelas ruas de Corumbá
bêbedo e sujo de catar papel por um gole
de pinga no bar de Nhana. De tarde esfarrapado e
com fome se encostava à parede de casa. A mãe
fez um prato de comida e eu levei para Rogaciano.
Ficamos a conversar. Ele ria pelas gengivas e
mandava pra dentro feijão com arroz. O bife
escorregava de gordura pelos beiços desse bugre.
Rogaciano limpava a gordura com as costas da mão.
Uma hora me falou que não sabia ler nem escrever.
Mas seu avô que era o Chamã daquele povo lhe
ensinara uma Gramática do Povo Guató. Era a
Gramática mais pobre em extensão e mais rica
em essência. Constava de uma só frase: Os verbos
servem para emendar os nomes. E botava exemplos:
Bentevi cuspiu no chão. O verbo cuspir emendava
o bentevi com o chão. E mais: O cachorro comeu
o osso. O verbo comer emendou o cachorro no osso.
Foi o que me explicou Rogaciano sobre a Gramática
do seu povo. Falou mais dois exemplos: Mariano
perguntou: – Conhece fazer canoa pessoa? – Periga
Albano fazer. Respondeu. Rogaciano, ele mesmo,
não sabia nada, mais ensinava essa fala sem
conectivos, sem bengala, sem adereços para a
gurizada. Acho que eu gostasse de ouvir os nadas
de Rogaciano não sabia. E aquele não saber me mandou de
curioso para estudar linguística. Ao fim me pareceu
tão sábio o Chamã dos Guatós quanto Sapir.

Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância

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