segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Da natureza dos sonhos

Quando o sonho por fim os membros ata
com um doce torpor, e quando o corpo
em profundo repouso está estirado,
então nos parece estar despertos,
e também fazer de nossos membros uso;
cremos ver o Sol e a luz do dia
em meio à noite tenebrosa;
e, em uma peça estreita e bem fechada,
mudar de climas, mares, montes, rios,
e atravessar a pé grandes planícies;
e no profundo e completo silêncio
da noite parece-nos ouvir sons,
e em silêncios responder acordes.
Vemos, de certa maneira surpreendidos,
semelhantes fenômenos, que tendem
todos a destruir a confiança
devida aos sentidos, mas é em vão:
o engano provém de nossa parte,
dos julgamentos da alma que nós todos
pintamos com aquelas relações
dos sentidos, supondo termos visto
aquilo que não viram nossos órgãos;
porque a distinção de relações
evidentes de incertas conjeturas
que nos associa à própria alma,
é a coisa mais extraordinária e excelente.

Ora, quero dizer a ti, com brevidade,
quais os corpos que dão à alma movimento
e de onde vêm suas ideias.
Digo que muitos são os espectros que vagam
em todas as direções, com muitas formas,
tão sutis, que se unem facilmente
se chegam a encontrar-te pelos ares
como o fio da aranha e pães de ouro;
porque, além do mais, excedem em delicadeza
as efígies pelas quais nós vemos
os objetos. É claro que se introduzem
por todos os condutos que há nos corpos
e dão interiormente movimento
da alma à substância delicada,
e animam suas funções.
Os centauros, Escilas e Cerberos
e fantasmas de mortos assim vemos,
cujos ossos a terra abrasa em si,
pois a atmosfera ferve em tais espectros;
uns se formam pelo ar,
outros emanam de variados corpos,
e de duas espécies juntas, resultam outras.
A imagem de um centauro não se forma,
seguramente, de um centauro vivo:
Não criou jamais a Natureza
semelhante animal: é um composto
de espectros de cavalo e de homem
que o acaso juntou; e deles dizemos
que seu tecido sutil e delicado
a reunião ao momento facilita:
como esta imagem, se combinam outras,
que por sua leveza extraordinária
afeta a alta no primeiro impulso,
porque o próprio espírito é delicado,
e de mobilidade extraordinária.
E uma prova certa disso
é se assemelharem em um todo os objetos
que a alma olha, aqueles que os olhos veem,
porque nascem do mesmo mecanismo:
se ensinei que via eu leões
recebendo auxílio dos espectros,
que ao chegar nos ferem bem nos olhos,
se deduz que igualmente a alma move
os demais espectros desses leões,
que tão bem vê os mesmos olhos.
Não é de outra maneira que a alma está desperta,
quando se estendeu o sonho sobre os membros
porque chegam a alma tão de fato
os espectros que durante o dia ferem,
que nos parece ver o tal deserto
que é dominado pela morte e pela terra.
A esta ilusão a Natureza obriga;
porque repousam todos os sentidos
em um profundo sono, as verdades
não podem fazer oposição aos erros
porque a memória está adormecida
e, lânguida, com o sonho não disputa;
e quem crê ver a alma com vida
é despojo da morte e do olvido.
No mais, não é uma maravilha
a movimentação destes espectros
e a agitação de braços e de membros
conforme as regras, pois durante o sono
devem ter lugar as aparências;
como que se o primeiro se dissipasse
e viesse a sucedê-lo outro diferente,
parece que é o mesmo espectro
que mudou de atitude num instante.
Muitas perguntas existem sobre o assunto,
e muitas dúvidas ainda a esclarecer
se desejamos a coisa aprofundar.
A primeira pergunta que se faz
é: por que a alma no momento tem
as ideias do objeto de que gosta:
os espectros olham a vontade?
Vêm-nos a imagem assim que desejamos?
Se mar, se terra, se, por fim, o céu,
os congressos, as pompas, os banquetes
se os combates, se outro objeto que nos apraz.
A Natureza não guarda e não cria
as efígies de todo e qualquer sinal,
enquanto que na região, no local mesmo,
jazem profundamente as almas de outros
ocupadas de ideias muito diferentes?
E o que direi quando vemos no sonho
os espectros irem bailando no compasso
quando movem seus membros delicados,
e estendem seus braços flexíveis
alternativamente com destreza,
e tornam a fazê-lo levemente?
Estudaram por acaso artes e regras
para poderem divertir-se à noite?
Tenho eu como certo e verdadeiro
que percebemos estes movimentos
em um instante apenas, assim como quando
se dá um único comando, e não obstante
passam-se muitos instantes, que somente a razão
distingue; esta é a causa
de se apresentarem espectros tão numerosos
em qualquer tempo e em qualquer parte:
grande é o seu número e sua leveza!
E sendo tão fina sua textura
não pode a alma vê-los claramente
sem recolher-se dentro de si mesma:
se ela não se dispõe a recebê-los
com grandes cuidados, todos perecem,
e o consegue graças à esperança
ver aquilo que realmente olha.
E não percebes tu também como os olhos
não podem distinguir aquele objeto
pouco sensível, porque o olharam
sem suficiente resguardo e sem preparo?
Mesmo os corpos que à vista estão expostos
são para a alma, se ela não se esforça
como se a cem mil léguas estivessem:
e por que admirar-se de que a alma
deixe escapar a todos os espectros
menos aqueles que a tem ocupada?
Talvez a alma exagere os espectros
e nos leva ao erro, e nos engana;
também transforma o sexo da imagem,
e em vez de uma mulher, nós só tocamos
um homem transmutado num instante,
ou outro qualquer objeto que o sucede
de semblante e de idade muito diferente:
isto provém do esquecimento e do sonho.

Tito Lucrécio Caro, Da Natureza das coisas, Livro IV (s.Ia.C.) (Tradução para o espanhol de José Marchena Ruiz de Cueto (1768-1821), chamado “O clérigo Marchena”; leva a data de 1791)

Jorge Luís Borges, in Livro de Sonhos

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