domingo, 16 de outubro de 2022

14 dólares

Um poeta da geração de 45, meu amigo (há desses milagres), contou-me que sua glória transpusera enfim o limite do bar Vilarino e se projetara nos Estados Unidos. Uma revista da Madison Avenue pedira-lhe versos, traduzira-os limpamente e pagara por eles quantia que nunca jornal algum, nestas brenhas, ousou soltar por trabalho desse naipe.
Mil contos? — perguntei-lhe, assanhadíssimo.
Tanto assim, não. Vinte dólares. Mas o versinho era curto, sem métrica. Legal, não acha?
Não dá para um automóvel, pensei comigo, mas felicitei o rapaz, quand même. Sem intenção de pedir-lhos emprestados; a fraternidade das gerações não chega a esse ponto. Em todo caso, apeteceu-me espiar a cor do dinheiro forte.
Amigo, vi poucos dólares em minha vida. Viagem mesmo, faço a de lotação para a cidade, e ando farto da efígie de Rio Branco. Me mostre seu dolarzinho.
Bem, devo explicar que dos meus vinte dólares poéticos, o governo norte-americano papou seis, de imposto de renda. Cobrado na fonte, hem?
Não pude eximir-me de admirar o dom de locomoção desse governo, que vai à própria fonte de Castália para haver o tributo da poesia. Onde se esboce um voo lírico, na América do Norte, vela um fiscal do Income Tax. Aqui, os poetas não devem a César, pelo exercício da musa.*
De qualquer maneira, catorze dólares são catorze dólares — sentenciei, mais para confortar o jovem confrade que como eco de convicção profunda. — Ora, deixe ver os catorze dólares.
O cheque?
Não, a espécie, a figurinha da águia.
Bem, não houve propriamente dólares. O cheque dizia esse nome santo, mas o caixa, no banco americano que o descontou, explicou-me que dólar é a mesma coisa que cruzeiro.
E você acreditou?
Era acreditar ou largar. Disse-me que, onde quer que eu levasse o cheque, me pagariam em cruzeiros, a menos que eu fosse a Nova York receber na matriz. Tentei argumentar que aquilo era uma importação de capitais, saudável à pátria: a tal revista possuía catorze dólares em Nova York, e por artes de um simples poema hermético, esses dólares vinham dinamizar a economia brasileira. O banco os desembolsaria aqui, mas ficaria com outros catorze em Nova York para importação de tratores, geladeiras etc.
E ele?
Sorriu, mas ponderou que eram ordens da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil. E tinha mais: ia pagar-me ao preço de compra, não ao de venda do dólar. Mas eu não estou vendendo, estou recebendo, retruquei ao caixa. Ele abanou a cabeça. “Também não está comprando; então, aplica-se a cotação de venda, que mais nos convém.” Em resumo: saí com mil e vinte e nove cruzeiros no bolso, um tanto confuso. Veja o que é o dólar: a primeira oportunidade que me dão de possuir vinte, logo de saída perco seis, e os outros se dissolvem no ar em simples cruzeiros. Há quem os venda e quem os compre, mas ninguém os vê. Tenho a impressão de que dólar não existe, apesar de tão forte, ou por isso mesmo.
Era também velha impressão minha. O dólar, como a girafa, não existe. O poeta da geração de 45 ganhara, além dos cruzeiros, outra metáfora. Fomos ingerir um chope.

* Isto em 1957. Agora, devem. (N. A.)

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

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