quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A Vida no Céu | Nono capítulo


(Sonhar: exercício que consiste em imaginar o impossível, para depois o realizar. Como voar.)

Sibongile tinha quinze anos quando uma senhora de muita idade, curvada como um ponto de interrogação, se deteve diante dela. A velha olhou-a longamente, estudou-lhe o rosto e as mãos, fez-lhe duas ou três perguntas e em seguida pediu-lhe que fosse chamar a mãe. As duas – a mãe de Sibongile e o ponto de interrogação – confabularam um bom tempo, em voz baixa. Dias depois, a mãe levou-a para uma casa onde já se encontravam algumas meninas da mesma idade. Sibongile venceu, nos meses que se seguiram, as difíceis provas e rituais para se transformar numa sangoma. Aprendeu a interpretar sonhos, a diagnosticar doenças no jogo dos ossos, a lançar encantamentos, mas não chegou a dominar todo o complexo mistério das raízes e ervas e infusões, pois, de repente, o seu mundo perdeu o chão.
O mundo inteiro perdeu o chão.
Lembra-se das imagens nas televisões. O mar cavalgando sobre as praias e as cidades. Arrastando transatlânticos, camiões e comboios, como se fossem gravetos. Em muitos países, incluindo na África do Sul, o poder central desagregou-se. O dinheiro deixou de ter valor. Bandos errantes assaltavam as lojas e as casas. As igrejas encheram-se de multidões desesperadas. Foi um tempo bom para todo o tipo de profetas, sacerdotes e xamãs, incluindo as sangomas. Sibongile não teve dificuldade em conseguir lugar numa das balsas, quando Durban se ergueu no ar.
As pessoas precisavam dos serviços dela, precisavam de alguém que apontasse caminhos, que assegurasse algum alívio para males como a angústia, a desesperança, a nostalgia de um chão, a escuridão do futuro. Sofrimentos que os melhores médicos não eram capazes de enfrentar.
O Española Way caiu sobre Durban como uma ave de rapina sobre a carne indefesa de um pardal. Dois ou três homens tentaram reagir, mas foram rapidamente dominados. Os piratas brandiam armas de fogo. Além disso, sabiam lutar. Mang, por exemplo, era um praticante exímio de pencak silat, uma arte marcial indonésia, bem como da eskrima, luta com bastões, espadas e facas, de origem filipina. Depois de reunirem todos os habitantes no centro da aldeia, os piratas foram de balão em balão, recolhendo alimentos, joias e outros objetos de valor. Ao entrar numa das balsas, a Wedge Beach, Mang viu uma mulher escondida num dos armários.
Assim que a vi apaixonei-me por ela – contou Mang. – Era linda. Era linda, como uma artista de cinema de Bollywood.
Bollywood?!
Bollywood. Era assim que chamávamos à indústria de cinema indiana. A capital do cinema indiano ficava em Bombaim. Hoje há uma aldeia com esse nome, enorme. Ainda fazem filmes lá. Mas não é a mesma coisa.
Sibongile sorriu:
Nunca fui bonita. Mang, sim, era um homem bonito.
Mang sabia que não poderia ficar em Durban. Sabia que não poderia levar Sibongile para o balão dos piratas. Então soltou a Wedge Beach e fugiu com a sangoma. Era uma noite sem lua. Os piratas só deram conta da deserção na manhã seguinte. Ao compreender o que acontecera, Boniface ficou louco de fúria. Supôs que o indonésio descobrira algum tesouro, provavelmente joias, e que fugira para não o partilhar. Mang riu-se ao recordar o episódio. Apontou para Sibongile:
O meu tesouro era esta mulher!
A balsa não tinha computador de bordo, nem radar, de forma que se lançaram às cegas no céu. Andaram à deriva durante três dias. Uma tarde, viram aproximar-se uma enorme balsa negra. O indonésio reconheceu a Española Way. Compreendeu que estava perdido. Tomou, então, uma decisão suicida. Fez com que o balão descesse ao nível do mar, oculto pela bruma, lançou um bote insuflável e depois saltou. Os piratas, que perseguiam o Wedge Beach, conseguiam vê-lo no radar. Não viram, porém, o mergulho de Mang. Esperaram que o balão voltasse a subir e abalroaram-no. Viraram e reviraram o Wedge Beach. Não encontraram sinais de Mang, nem tesouro algum. Interrogaram Sibongile, sem violência, sem erguerem a voz, até obsequiosos, com salamaleques e mãozinhas de seda. A verdade é que a temiam. Finalmente, Boniface convidou-a a instalar-se no Española Way. Foi um sequestro amável. Ao capitão dos piratas convinha, por um lado, ter a bordo uma mulher como ela, capaz de presságios e encantamentos. Dava segurança à tripulação e a ele aumentava-lhe o poder. Convenceu-se, além disso, de que Mang retornaria, mais tarde ou mais cedo, à procura da sangoma, e que nessa altura poderia trocá-la por bom preço. Continuava a acreditar que Mang roubara um tesouro.
Sibongile consultou os ossos, e o seu coração sossegou. Nas noites seguintes sonhou muito. Viu Mang perdido num labirinto de algas e de brumas. Viu-o a arder em febre, a sufocar de calor, a remar por entre um vagaroso cardume de peixes mortos. Viu-o a sorver, com os lábios gretados, a humidade das roupas. Durante semanas não voltou a sonhar. Antes de se deitar tomava um chá de camomila, o qual, segundo a tradição, propicia os sonhos. Nem isso a ajudava. Dormia e despertava e só encontrava dentro de si o espesso negrume do medo. Então, numa noite em que havia discutido brutalmente com Boniface, exigindo que este a devolvesse a Durban, sonhou que Mang corria, livremente, num chão muito verde. Acordou encharcada em suor. Esforçou-se por adormecer, para retomar o sonho no ponto onde havia acordado, os pés nus de Mang movendo-se rapidamente, a fugaz silhueta de uma girafa ao longe, mas não conseguiu.
Foi assim mesmo – confirmou Mang.
Lançara o bote, colocara às costas uma mochila com várias garrafas de água e mergulhara. Sentira o estalo do corpo ao bater no mar, e o ardor nos pulmões, ao emergir. Alçara o corpo para o bote. Erguendo o olhar, vira o Wedge Beach a esfumar-se na neblina, levando a mulher que amava. Remou durante horas. Desmaiava. Acordava. Bebia um pouco de água e voltava a remar. Doía-lhe a cabeça. Sofria tonturas e vagas alucinações. Vieram as algas e depois um oceano denso e nauseabundo de peixes mortos. Atravessou o pesadelo, resistindo à tentação de comer os peixes, até que, de repente, um leve fulgor o atraiu. Remou na direção desse brilho.
Uma praia!
Julgou que estivesse a sonhar. Não se beliscou, porque era um sonho bom. Desembarcou na areia. Pensou, primeiro, que fosse um simples atol, semelhante a alguns que visitara anos antes, acompanhando mergulhadores-coletores. Os atóis são pequenas ilhas mortas, rochas cobertas de algas, ao redor das quais se concentra todo o tipo de dejetos.
Avançou por entre o nevoeiro, de surpresa em surpresa, pois a terra continuava a erguer-se e a cada encosta se fazia mais verde. Uma erva húmida ia emergindo, afirmando-se. Ao fundo, a luz do sol iluminou por um breve instante um bosque espesso.
Não, não encontrara girafas. Topara, porém, à entrada do bosque, com uma tribo de pequenos macacos, muito ferozes, que o haviam expulsado à pedrada. Circundando a ilha, achara coqueiros. Partira os cocos para beber a água e provar a saborosa polpa. Durante um tempo que lhe pareceu infinito, mas que podem ter sido apenas algumas horas, ou, talvez, um dia, uma noite e outro dia, sobreviveu à custa dos cocos e de pequenos peixes aflitos, presos entre as algas, os quais devorava crus. O calor e o excesso de humidade provocavam-lhe atrozes cefaleias. As rochas rasgavam-lhe os pés. Cruéis nuvens de mosquitos tinham-lhe deixado a pele em ferida. Desesperado, ansiando por um pouco de frescura, enfrentou a ira dos macacos e entrou no bosque. Uma pedra atingiu-o na nuca e desmaiou. Não sabe por quanto tempo permaneceu desacordado. Quando recuperou os sentidos estava no céu, estendido, de costas, no cesto exíguo de um pequeno balão salva-vidas, com uma ligadura na cabeça. Encontrou, ao seu lado, um enorme cacho de banana-pão e dois garrafões com água. Mais nada. Teve sorte. Antes de terminar de comer as bananas, antes que a água se esgotasse, foi descoberto por uma balsa pesqueira norueguesa. Não lhes falou na ilha. Nunca acreditariam nele. Além disso, não saberia explicar como fora parar dentro de uma balsa salva-vidas. Disse-lhes que era mergulhador-coletor, e que o seu aeróstato sofrera uma avaria grave, perdera hélio, e abatera. Tivera apenas tempo para insuflar um balão salva-vidas e colocar nele alguns mantimentos. Viajou durante um ano com os noruegueses, pescando, conhecendo aldeias e divertindo-se a inventar histórias (Mang é um grande contador de histórias). Finalmente, deixaram-no em Jakarta, onde reencontrou familiares e se reconverteu ao delicado negócio das sedas.
Correram anos atrás de anos.
O tempo, aliás, não faz senão correr. Por vezes, em certas tardes soalheiras, quando no céu nada se move, acreditamos que adormeceu, mas é uma ilusão. Nós, sim, adormecemos. O tempo nunca se cansa.
Sibongile assistiu a inúmeros assaltos. Participou em alguns. Os seus sonhos ajudavam Boniface a selecionar os alvos. Certa ocasião, ao atacarem uma pequena aldeia americana, foram recebidos a tiro. Recuaram a custo, arrastando feridos. No regresso à Española Way, alguns dos piratas voltaram-se contra a sul-africana, aos gritos, acusando-a de pouco empenho nos sonhos. Acusação, aliás, com algum fundamento: a sangoma perdera a alegria de sonhar e desleixava-se a lançar os ossos. Um dos piratas, um nigeriano gigantesco, com braços grossos como troncos de imbondeiro, um pescoço de touro, esbofeteou-a:
Bruxa! Vais morrer!
Boniface tomou a defesa dela. Talvez porque se afeiçoara à sangoma. Talvez por considerar que ali, no Española Way, só a ele cabia o direito de decidir sobre a vida e a morte de quem quer que fosse. A discussão amargou, subiu de tom, entre ásperos brados e acusações, até que o capitão dos piratas sacou da pistola e disparou contra o nigeriano, atingindo-o numa perna. Os outros piratas juntaram-se em redor do companheiro. Boniface e Sibongile foram recuando. Conseguiram alcançar uma das lanchas rápidas e fugiram.
Por sorte, o Paris vagava perto. Boniface trazia dez diamantes escondidos nas pregas do blusão. Duas dessas pedras serviram para subornar os polícias de fronteira do dirigível, pois nem o norte-americano nem a sul-africana, possuíam documentos, além de que teriam de explicar o que faziam, perdidos entre as nuvens, numa lancha rápida sem nome nem registo.
Uma vez no Paris, a relação entre os dois azedou-se. Sibongile pensou em denunciar Boniface às autoridades francesas. O norte-americano recordou-lhe que, embora contra vontade, ela própria havia participado em ações de pirataria. E, assim, a sangoma voltou a lançar os ossos, lendo o destino dos pobres emigrantes, em troca de um prato de comida.
Sibongile não voltara a sonhar com Mang. Convenceu-se de que o indonésio havia morrido. Mang, de novo no céu, procurou por ela. Pesquisou no Facebook. Nunca a encontrou. No Española Way, como é óbvio, ninguém acedia às redes sociais. No Paris, sim, toda a gente, com exceção dos passageiros clandestinos.
O que é que um passageiro clandestino mais ambiciona? – Sibongile fez a pergunta, sorriu, e ela mesma deu a resposta. – A invisibilidade. Assim, continuei invisível.
Não fosse a mão caprichosa do acaso, e os dois jamais se teriam reencontrado. Certa noite, num bar, Mang escutou um comerciante de sedas contar como uma mulher africana o salvara da morte:
Estava no Paris, em negócios. Saía de um restaurante, acompanhado por um dos meus clientes, quando aquela mulher se postou diante de mim. No teu regresso a Jakarta, disse-me, de olhos fechados, não te detenhas em Mumbai. Se o fizeres, morrerás num incêndio. Não lhe prestei atenção. Na viagem de regresso deu-se a coincidência de Mumbai se atravessar no meu caminho. Não conheço Mumbai. Pensei em jantar por lá, em pernoitar, mas logo me lembrei do aviso da mulher, e desisti. Prossegui viagem. Soube, horas depois, que acontecera um terrível incêndio na aldeia. Estavam a fazer um filme, um daqueles filmes cheios de música e de romance, que eles fazem em Mumbai, e nesse filme acontecia um incêndio. Perderam o controlo do falso fogo, e o fogo real matou muita gente.
Mang empalideceu. O coração aos saltos dentro do peito:
Essa mulher tem uma marca na testa? Uma meia lua?
O comerciante confirmou. Acrescentou que pretendia regressar em breve ao Paris, para lhe agradecer. Mang deu-lhe o seu endereço de correio eletrônico, solicitando que o passasse à sangoma. Sibongile ficou eufórica ao saber que Mang estava vivo.
E os sonhos? – perguntei-lhe. – Porque não sonhaste tu com este encontro?
A sangoma fingiu-se ofendida com a pergunta:
Não vejo o meu próprio futuro! Não quero. Avançar por um futuro já sonhado é como viver uma vida que outra pessoa já viveu por mim.

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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