segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Cloro

Grilos, folhas secas, sapos, papéis, bolsas, embalagens, bitucas, baratas d’água, cocô de garças, morcegos, flores, mais folhas secas. Às vezes, uma iguana morta, flutuando de barriga para cima como um crucificado. Pescam. Eles pescam. De quando em quando, levantam a cabeça e veem uma embarcação em que pescadores de verdade movimentam água de verdade — água pura, livre, sem domesticar — para pegar peixes, não porcarias. Esse pensamento não passa pela cabeça deles. O rio contém tudo: é marrom acinzentado, está muito sujo. A piscina, ao contrário, é uma pele de arminho no meio de um lodaçal. Inútil. Penosamente impecável. Mal acabam de tirar o último inseto morto e já há uma folha seca. Suja. Nunca deixa de estar suja. Todos os dias é preciso jogar cloro. Cloro que é trazido dos Estados Unidos e que desinfeta a água melhor que o nacional. Três copos de cloro. O copo até a borda. Repetiram isso vinte vezes e puseram três cartazes no quarto de limpeza.
PARA A PISCINA: TRÊS COPOS DE CLORO “ATÉ A BORDA”.
Alguém, debaixo da palavra borda, desenhou um pinto. Nos três cartazes. Neste trabalho não se pode pensar. Pensar seria atrair a loucura. Deve-se trabalhar sem parar, embora não se possa limpar essa piscina de águas turquesa porque nunca, jamais, nunca estarão imaculadas. Você se vira e num segundo já há um grilo, uma flor, uma bituca, um papel, uma abelha. Às vezes um passarinho morto, desses amarelos que sempre voam em dupla, com as asas abertas e o outro passarinho à margem: a natureza incompleta.
São três homens que limpam a área da piscina. Usam uniformes brancos que suas mulheres lavam à mão, com cloro nacional, e que ficam cinzentos, encardem, por mais que elas os esfreguem até que os nós das mãos esfolem, por mais que os ponham ao sol para branqueá-los. Então recebem uniformes novos, ofuscantes, que são descontados aos poucos do salário. A piscina sempre tem de estar como um espelho, embora durante todo esse tempo nunca se viu ninguém nadando ali. Das janelas do hotel, os turistas veem o rio e a piscina, o pequeno olho azul ao qual os três homens dedicam horas e horas de sua vida. Em vão.
Grilos, folhas secas, papéis de bala.
As férias nesses países têm disso, os contrastes. Você pode tomar, no café da manhã, sucos de frutas de maracujá, que também se chama fruta da paixão, numa mesa com toalha de linho farfalhante, refletindo um branco absoluto, no terraço de uma suíte clara com uma cama enorme e edredons de algodão nuvem e olhar, lânguida, para o rio, esse trem que nunca termina. Esses países são sujos, você sabe, você observa a caminho do hotel: nos ônibus enlameados, no rosto da menininha que pede dinheiro e cujo olhar você não pode evitar apesar dos óculos, na roupa suja, quase marrom, das pessoas que esperam para atravessar num semáforo, na água podre acumulada nos buracos, nas calçadas. Mas aqui e agora, quem diria. O roupão com o logotipo dourado do hotel parece a pele, espessa e nívea, recém-enxaguada num manancial gelado, de um urso polar, e ali dentro desse abraço você pode viver a fantasia de que está tudo bem. É impossível pensar no fim do mundo quando você está nesse banheiro tão imaculado, em que as toalhas, neve quentinha, são pelúcias perfumadas com eucalipto, onde a banheira parece nunca ter sido usada e o espelho só reflete superfícies belas, imaculadas, deslumbrantes. As pílulas se tornam até desnecessárias porque tudo está em seu lugar, cheira a limpeza, é agradável, e o pé afunda até sumir de vista em tapetes felpudos como filhotinhos, de um tecido tão macio que dá vontade até de chorar. A mala, nem pensar em abri-la, seria trazer para dentro a sujeira de fora, sua roupa íntima, suas calças de pijama, seus livros, sua nécessaire de plástico com um desodorante pela metade, corretivo para olheiras, protetor solar, vários cremes antirrugas, manteiga de cacau, vibrador: nada disso tem lugar aqui. Até o carregador do celular, como uma larga tripa negra, seria inadequado nessa parede tão pulcra. Não. Esse é o novo mundo, a anistia.
Você se olha ao espelho por um segundo e cobre o reflexo de seu rosto com a mão. Não devia ter dado ouvidos ao lance do bronzeado artificial. Sente-se manchada, indigna do mundo que a rodeia. Recorda que sua pele era da cor da madrepérola, um rosto talhado em alabastro puro, e agora é um papelão cor de cenoura. A sensação de estar passando ridículo é tão imensa que lhe dá náuseas. Como se pode sobreviver sem o esplendor? Assim se sente a solidão: a beleza era uma companhia. E sua capa de invulnerabilidade e a garantia das carícias. Não havia nada que resistisse a ela. Isto é ser bela: que ninguém lhe diga não.
No terraço, põe um guardanapo farfalhante, engomado, sobre seu regaço, o roupão se abre um pouco, assomam suas coxas, suas pernas bronzeadas artificialmente, frouxas como medusas, as pequenas veias verdes que há tempos lhe desenham rodovias, odiosas estradas, da virilha até os pés. Nada a assemelha às mulheres das revistas, do cinema, tão imaculadas, iridescentes mulheres de nácar. Ela continua sendo uma mulher? As frutas em formato de estrela sobre um prato resplandecem sob o toldo branco, também os feixes platinados da chaleira. São mórbidos a redondeza do pão com gergelim, o leite que cai em serpentinas sobre o chá, a manteiga cortada em lascas, os morangos gordos, túrgidos, vermelho-sangue. Abre completamente o roupão e deixa que o sol a banhe como uma mangueira. Já é tarde para todos os demais tatos. O homem que trouxe o café da manhã sorria muito, sorria. Homem moreno vestido como soldadinho de teatro infantil. Homem moreno fazendo uma pequena mesura. Mas a chamou de madame da forma com que se chama madame às avós e em seus olhos ela não viu nem uma réstia de desejo até que mostrou a nota. Ela já é invisível até para esses homens, a última esperança de sua beleza vital: a mulher estrangeira, insólita como a neve, objeto precioso do desejo do outro. Ou seja, o que foi até ela não sabe exatamente quando, mas que já não é e nem, é claro, voltará a ser. Ela se lembra de um amante de pele chocolate em algum desses países, recorda seu cu preto, as costas de madeira escura, a cabeça com cachos infantis, sobre a cama branquíssima de outro hotel como este. Ela se lembra do feliz abandono de tocar a superfície de um homem como se toca a camurça. Lembra-se, também, da bestialidade de uma metida de quatro, o beijo dos lábios grossos, a língua com gosto de Coca-Cola. Abre um pouco as pernas, se toca, está seca por dentro e por fora. Um lírio flutua abandonado numa floreira sem água, com as pétalas retorcidas e o pistilo cinzento, os estames já sem pólen. Observa a bandeja tão simétrica, os botões de rosa frescos que lhe trouxeram num vaso prateado, comprido como um tubo, os pires brancos com manteiga e geleia, a delicada porcelana para o chá. Ela olha para tudo procurando umidades, enfia o dedo médio na manteiga e quando já está na altura do umbigo se arrepende. Pensa em chupá-lo, mas o limpa com o guardanapo de linho, que num segundo deixa de estar imaculado. Sente nojo ao ver o guardanapo engordurado, é impossível pensar em outra coisa que não o guardanapo sujo, violentado. Ela o atira pela sacada e o observa planar até que cai na piscina. Fantasia o nunca permitido: que um menino, um menino ou uma menina, em seus braços, abraçado ao seu pescoço, aponte o guardanapo caindo e diga olhe mamãe, uma gaivota, uma gaivota. Fantasia o nunca permitido: que o homem de chocolate venha com uma xícara nas mãos, faça-lhe uma pequena massagem na nuca e olhe com ela o rio enquanto bebe seu primeiro café.
Quando você está aqui, numa suíte branca dessas, deveria se lembrar de não fantasiar com o que nunca foi nem olhar trinta andares abaixo, para a origem do mundo, para esses três infelizes que limpam uma piscina que jamais ficará limpa em vez de subir no elevador panorâmico para amá-la desesperadamente, pela última vez, comendo sua pele de mulher ainda viva aos pedaços. Ela se entregaria com gosto ao canibalismo desses três homens que agora, com certeza, olham para ela com uma cobiça assexuada, com a única lascívia daquilo que há em sua carteira. Ela lhes daria tudo em troca de um abraço. Deveria ser proibido olhar para coisas que remetam a essa sensação. A isto. À inutilidade de certos gestos e de certas vidas. Três homens limpando uma piscina para os outros todo dia, toda hora, deve haver sujeira, merda, dejetos, iguanas esticadas como crucificadas. Uma mulher estrangeira deixa uma xícara de porcelana sobre um pires, seu roupão que plana como um morcego branco, o rio ao fundo, um trem que sobreviverá a todos. E lá embaixo três homens que se encarregarão, como todo dia, de deixar a piscina outra vez imaculada.

María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos

Nenhum comentário:

Postar um comentário