segunda-feira, 27 de junho de 2022

O jardim abandonado

Guimarães Rosa escreveu sobre um jardim abandonado. “Sem gente, virara-se em matagalzinho, sílvula, pequena brenha. À expansa, nos canteiros surgiam bruscas espécies, viajadas no ar: a daninha formosa, a meiga praga, os capins que entrementes pululam...”.
Lembrei-me então de um haicai de Bashô, também sobre um jardim abandonado:

Na velha casa
que abandonei
as cerejeiras florescem.

Era assunto de uma conversa com uma amiga, quando ela se lembrou do filme O jardim secreto. Fiquei com vontade de contá-lo por ser muito bonito, baseado em um clássico da literatura inglesa.
São quatro os personagens principais: uma menina que fica órfã e vai morar na casa do tio, uma daquelas casas de campo inglesas que mais se parecem com palácios, cercada por uma infinidade de jardins floridos; um menino que nascera lá mesmo e conhecia todos os segredos do lugar; um outro menino que era mantido na cama – dizia-se que era doente e que, para curar-se, deveria ficar na cama, sem fazer esforço, num quarto escuro e de janelas fechadas, para o vento não entrar; e, como não poderia deixar de ser, uma governanta truculenta encarregada de tomar conta do menino supostamente doente.
O menino que ali nascera levou sua amiguinha para conhecer tudo que havia, mas encontraram uma coisa misteriosa para a qual ele não teve explicações. Era um muro alto, de forma circular, fechado em si mesmo, que não tinha porta de entrada. Toda a parede do muro estava coberta de hera, sinal de que fazia muito tempo que ninguém entrava lá.
Lá dentro, depois se soube, havia um jardim selvagem que em outros tempos havia sido o mais belo jardim da propriedade. Era o jardim do dono da casa, que passava longos tempos ali com a esposa a quem muito amava, no meio das flores e dos perfumes. Num canto do jardim havia um balanço, brinquedo de que todo mundo gosta.
Aconteceu, entretanto, uma tragédia (não me lembro bem o que foi) que tirou a vida da esposa amada. O marido, dilacerado pela dor, trancou o jardim para que ninguém entrasse e o abandonou. Haverá melhor símbolo para um coração dilacerado que um jardim abandonado e selvagem?
Mas o menino e a menina ficaram mordidos de curiosidade e começaram e explorar a hera que cobria o muro, até que encontraram uma porta com uma fechadura. Mas eles não tinham a chave! Puseram-se então numa atividade de detetives, examinando todas as gavetas, todas as caixas da casa, todos os chaveiros, até que a encontraram. Tinham em mãos a chave que lhes abriria o jardim secreto! E foi o que fizeram.
Selvagem, abandonado – mas absolutamente maravilhoso. Passaram, secretamente, a cuidar do jardim. Havia todo tipo de espinhos e de ervas daninhas, mas havia também árvores gigantescas que se alongavam para os céus.
Foi então, e só então, que começaram a ouvir gemidos num quarto da casa, um quarto em que lhes era vedado entrar. Aproveitando-se da ausência da governanta, esgueiraram-se para dentro do quarto e conheceram um menino magro, triste, esquálido, no escuro, longe do vento. Bolaram então um plano: sequestrar o menino e levá-lo para visitar o jardim secreto. E esse foi o início da cura do menino, da restauração do jardim e do retorno da alegria para aquele espaço fechado, que desde então ficou aberto.
O jardim fechado e abandonado é símbolo da tristeza, da morte do amor. As plantas selvagens, as pragas, os animais peçonhentos tomam conta de tudo. E aquele menino doente era um jardim fechado, doente pela ausência da beleza. A beleza dá vida. O jardim é o símbolo da vida e do amor. Foi por isso que o primeiro ato de Deus foi plantar um jardim.
Lá, no alto de uma montanha de Minas, há um jardim. Quem o visse teria de dizer: “Que belo!”. Porém agora está meio abandonado, do jeito que Guimarães Rosa descreveu. Mas não tem importância, não. Vou procurar a chave que deixei não sei onde. E, enquanto procuro, olho para as árvores. E, à semelhança de Bashô, escrevo o meu haicai:

E no jardim que abandonei
um pinheiro e um jequitibá
fazem cócegas nas nuvens…

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado

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