segunda-feira, 4 de abril de 2022

Carta perdida em uma gaveta

Faz quanto tempo que não penso em outra coisa a não ser em você, imbecil?, você, que se intromete nas linhas do livro que leio, na música que escuto, dentro dos objetos que vejo. Não creio ser possível que o revestimento do meu esqueleto seja igual ao seu. Suspeito que você pertence a outro planeta, que seu Deus é diferente do meu, que o anjo da guarda da sua infância não se parecia com o meu. Como se se tratasse de alguém que eu tivesse entrevisto na rua, acho que não nos conhecemos na infância e que aquela época não passou de um mero sonho. Pensar, de manhã até a noite, e da noite à manhã, nos seus olhos, seus cabelos, na sua boca, na sua voz, nesse jeito que você tem de andar, não me deixa trabalhar em nada. Às vezes, ao ouvir seu nome ser pronunciado, meu coração para de bater. Imagino as frases que você diz, os lugares que frequenta, os livros de que gosta. No meio da noite, acordo em sobressalto, me perguntando: “Onde estará aquela besta?” ou “Com quem estará?”. Às vezes, com meus amigos, conduzo a conversa a temas que fatalmente atraem comentários sobre o seu modo de viver, sobre as particularidades de sua personalidade, ou então passo pela porta da sua casa, perdendo um tempo infinito te esperando, para ver a que hora você sai ou que roupa está vestindo. Nenhum amante terá pensado tanto em sua amada como eu em você. Sempre me lembro das suas mãos levemente vermelhas, e da pele dos seus braços, mais escura nas dobras do cotovelo e no pescoço, como areia úmida. “Será sujeira?”, penso, esperando conseguir com um defeito novo a destruição do seu ser tão desprezível. Eu poderia desenhar seu rosto de olhos fechados, sem me enganar quanto a nenhuma das suas linhas: me pouparei de fazê-lo, pois temo melhorar suas feições ou divinizar a expressão um pouco bestial das suas bochechas proeminentes. Pode ser mesquinho da minha parte, mas todas as minhas mesquinharias eu devo a você. Depois da nossa infância, que transcorreu em um colégio que foi nossa prisão, onde nos víamos todos os dias e dormíamos no mesmo dormitório, eu poderia enumerar alguns encontros furtivos: um dia, na plataforma de uma estação, outro dia numa praia, outro dia no teatro, outro dia na casa de uns amigos. Não me esquecerei daquele último encontro, tampouco me esqueço dos outros, mas o último me parece mais significativo. Quando notei sua presença naquela casa, perdi a consciência por uma fração de segundo. Seus pés lascivos estavam nus. Pretender descrever a impressão que me causaram as unhas dos seus pés seria como pretender reconstruir o Partenon. Acho, no entanto, que na infância tive o pressentimento de tudo o que eu ia sofrer por sua causa. Ouvi minha mãe dizer seu nome quando entramos, pela primeira vez, para visitar aquele colégio cujo jardim era repleto de jacarandás em flor, e nele havia aquelas duas estátuas, segurando globos de luz em cada um dos lados do portão.
Alba Cristián é filha de uma amiga minha. Vai ficar como interna aqui também. É da sua idade — disse minha mãe, cruelmente.
Senti um estranho mal-estar: pensei que era por culpa do colégio onde iam me internar. Entretanto, como aqueles anéis antigos que continham veneno sob um camafeu ou sob uma pedra, seu nome, como se também fosse um círculo, inconscientemente me pareceu venenoso. Outro pressentimento me avassalou naquele dia do passeio aos lagos de Palermo, quando descemos para comer a merenda sobre o gramado e Máxima Parisi te mostrou uns cartões-postais que ela não quis mostrar a mim, e quando, no fim da tarde, tomando um sorvete de framboesa, ela se recostou sobre seu ombro, no ônibus que nos levou de volta ao colégio. Naquela intimidade que me excluía, senti a ameaça de outras tristezas. Não pense que me esqueci da senha misteriosa da sua mesa de cabeceira, que arrancava um sorriso de Máxima Parisi, nem daquele maço de cigarros americanos que, sem me convidar, vocês fumaram no alpendre dos arbustos, “corpo no chão”, diziam vocês, “como os soldados”, naquele esconderijo que detesto até hoje. Não pense que me esqueci daquele livro pornográfico nem do gato que vocês batizavam com um novo nome extravagante a cada dia, pobre coitado! Nem daquela espécie de supositório para perfumar o banheiro com odor de rosas, que vocês dissolviam num copo de água e passavam nos cabelos e nos braços. Não pense que me esqueci de quando Máxima ficou doente, e você se pendurou no meu braço o dia inteiro, me dizendo que era eu a sua amiga predileta e que ia me convidar para ir à sua casa de campo no verão. Não me iludi, porque, além do mais, você não me inspirava simpatia alguma. Busquei sua amizade só para te afastar das outras. No fundo do meu coração se retorcia uma serpente semelhante à que fez com que Adão e Eva fossem expulsos do Paraíso.
Suspeitava que minha vida seria uma sucessão de fracassos e de abominações. Não há criança infeliz que depois seja feliz: quando adulta, poderá ter lá alguma esperança em algum momento, mas é um erro acreditar que o destino possa mudar as coisas. Pode ter vocação para a felicidade ou para a infelicidade, para a virtude ou para a infâmia, para o amor ou para o ódio. O homem carrega sua cruz desde o princípio; há cruzes de madeira rústica, de alumínio, de cobre, de prata ou de ouro, mas todas são cruzes. Você bem sabe qual é a minha, mas talvez não saiba qual é a sua, pois nem todos os seres são lúcidos, nem capazes de ler o destino nos signos que diariamente surgem ao redor de si. É crueldade de minha parte te advertir disso? Dane-se. Por você não sinto a menor pena. Incomoda-me que alguém ainda ache que somos amigas de infância. Não falta quem me pergunte, em um tom ao mesmo tempo meloso e escandalizado:
Você não tem amigos de infância?
E eu respondo:
Não nasci grudada aos amigos de infância. Se agora tenho pouco discernimento para escolhê-los, imagine quantos erros não cometi nos meus primeiros anos! As amizades de infância são equivocadas, e não se pode ser fiel a um equívoco indefinidamente.
Aquele dia, na casa dos nossos amigos, ao te ver, uma nuvem trêmula envolveu minha nuca, meu corpo se cobriu de arrepios. Peguei um livro que estava sobre a mesa e comecei a folheá-lo com avidez: só depois percebi que o livro se intitulava Balancete das vendas de bovinos. A dona da casa me ofereceu um refrigerante de laranja horrível, “de alfinetes”, como chamávamos toda bebida gaseificada. Bebi num gole só para disfarçar o tremor da minha mão; felizmente fazia calor e fui para a sacada, com o pretexto de tomar uma brisa e de olhar a vista que abarcava o rio da Prata ao longe e, em primeiro plano, o Monumento aos Espanhóis, que, visto desse ângulo, parecia mais do que nunca um gigantesco bolo de casamento ou de primeira comunhão. Sorri para a sua cara de besta, você sorriu de volta. Viver assim não era viver. Senti tonturas, náuseas. Daquele sétimo andar, contemplei a rua, pensando em como seria minha queda, caso me atirasse daquela altura. Uma banca de frutas, caixotes de lixo ao pé do prédio (os lixeiros deviam estar em greve) e um parapeito alto me atrapalhavam na hora de imaginar a cena. Para me acalmar, tentei me concentrar nessa ideia cheia de dificuldades. Tinha o poder, que agora não tenho, de me desdobrar: conversei com as pessoas que me rodeavam, ri, olhei para todos os lados com os olhos cravados no fundo daquele precipício com caixotes de lixo, com frutas e com homens passando. Tudo era menos imundo do que a sua cara. “A quantas músicas, a quanta gente, a quantos livros tenho que renunciar para não compartilhar os mesmos gostos com você?”, pensei ao olhar para dentro do apartamento através do vidro da janela. “Quero minha solidão, a quero com mil caras impessoais.” Olhei para você e através do reflexo do vidro sua cara de piranha tremulou, como se estivesse no fundo da água. Pensei em todos aqueles em que não posso pensar por sua causa e no sortilégio que me envolvia. Você está em mim como essas figuras nos quadros que escondem outras mais importantes. Um especialista pode apagar a figura sobreposta, mas onde está o especialista? Preciso dar uma explicação a respeito de meus atos. Depois de ter te cumprimentado com uma amabilidade inusitada, te convidei a tomar chá. Você aceitou. Eu te disse que minha casa estava sendo pintada. Por sorte você sugeriu que seria melhor irmos à sua casa. No momento em que você estiver preparando o chá e o deixar na mesa, fingirei um desmaio. Você irá pegar o copo d’água que vou te pedir, então jogarei na chaleira o veneno que trago na bolsa. Você irá servir o chá depois de um instante. Eu não tomarei o meu, pensei, como se delirasse enquanto você estava falando comigo.
Não realizei meu projeto. Era infantil. Achei mais inteligente usar esse procedimento para matar L. Descartei a ideia porque a morte não me pareceu um castigo.
O que você tem? — me perguntava L.
A conversa recaía em você. Eu dizia sobre você as piores coisas que se pode dizer sobre um ser humano. Falei de sujeira, de mentiras, de deslealdade, de vulgaridade, de pornografia. Inventei coisas atrozes que acabaram sendo maravilhosas. Não suspeitei que, pela primeira vez, L. se interessava por sua personalidade, por sua vida, por sua maneira de sentir e que tudo tinha nascido da minha imaginação.
Durante o tempo que me dediquei a pensar só em você, a falar das suas roupas horríveis, da sua maldade, de como você não tinha nojo de meter dinheiro sujo na boca e coisas que encontrava no chão, construí para vocês, com minha cumplicidade, com minhas suspeitas, com meu ódio, este ninho de amor tão complicado onde vivem afastados de mim por minha culpa. Quero que saiba que você deve a sua felicidade ao ser que mais te despreza e te detesta no mundo. Quando desaparecer esse ser que te enfeita com sua inveja e te embeleza com seu ódio, sua felicidade estará acabada junto com a minha vida e o fim desta carta. Então você se internará em um jardim semelhante ao do colégio que era nossa prisão, um jardim ilusório, cuidado por duas estátuas, que seguram dois globos de luz nas mãos, para iluminar a sua solidão inextinguível.

Silvina Ocampo, in A fúria

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