segunda-feira, 28 de março de 2022

Lavar roupa e limpar a casa num navio de guerra

Além das outras tribulações relacionadas a sua maca, você tem de mantê-la limpa e branca como neve. Quem nunca atentou às longas fileiras de imaculadas macas expostas nas trincheiras de um navio de guerra, onde, ao longo do dia, ao menos a parte externa delas toma um ar?
Daí que sejam regularmente designadas algumas manhãs para que façamos a faxina das macas; essas manhãs são chamadas manhãs de esfrega-macas; e furioso é o esfregar que nelas tem lugar.
A operação começa antes de o dia nascer. Toda a marinhagem é convocada, e ao chamado todos comparecem. O convés inteiro é coberto de macas, a popa e proa; considere-se um homem de sorte se encontrar espaço suficiente para nele esticar a sua própria. De joelhos, quinhentos homens esfregam a sujeira com escovas e vassouras; acotovelando-se, comprimindo-se, brigando entre si pelo uso da água ensaboada uns dos outros; enquanto todo o sabão do comissário por eles utilizado cria uma só e indiscriminada espuma.
Por vezes, você descobre que, às escuras, esteve o tempo todo esfregando a maca do vizinho em vez da sua. Mas é tarde demais para começar de novo; pois agora a ordem é que cada homem avance com sua maca para que esta seja amarrada a uma estrutura de cordas de pano em forma de rede e, uma vez içada ao alto, ali seque.
Feito isto, reúna sem demora suas blusas e calças e, no convés já inundado, dê início aos trabalhos de lavanderia. Você não tem qualquer balde ou bacia para si — o próprio navio é um imenso tanque de roupa, onde toda a marujada lava e enxágua, enxágua e lava, até que finalmente se dá a ordem de prender as roupas, para que elas também sejam içadas para secar.
Sobre as três cobertas, então, tem início a zorra, operação de limpeza assim chamada em virtude do estranho nome conferido ao principal instrumento empregado. Trata-se de uma enorme pedra plana com longas cordas amarradas em cada ponta, as quais servem para que a pedra deslize, de um lado para o outro, sobre os conveses molhados e cobertos de areia; a mais desagradável das atividades, digna de um cão, de um escravo nas galés. Nos cantos e nos pontos mais recônditos, entre mastros e canhões, usa-se uma pedra menor, conhecida como devocionário, uma vez que o devoto dela ocupado precisa ficar de joelhos para utilizá-la.
Por fim, ocorre uma grande inundação, e os conveses são implacavelmente surrados com lambazes secos. Depois disso, um instrumento notável — uma espécie de enxada de couro — é usado para puxar e absorver os últimos pingos e filetes de água das tábuas. Sobre o tal rodo, penso em escrever um memorial e lê-lo diante da Academia de Artes e Ciências. É dos mais curiosos instrumentos e tarefas.
Mais ou menos ao tempo em que todas essas operações são concluídas, o sino dobra oito, e todos são convocados ao desjejum sobre o convés alagado e absolutamente desconfortável.
Ora, na condição de marinheiro comum, Jaqueta Branca protesta com veemência contra a religiosa e diária inundação das três cobertas de uma fragata. Em épocas sem sol, as dependências dos marinheiros ficam permanentemente úmidas; de modo que mal se pode sentar sem correr o risco de uma lombalgia. Um velho marinheiro reumático da âncora d’esperança, chegou ao ponto de costurar um pedaço de vela alcatroada no fundilho das calças.
Que os oficiais asseados e aprumados que tanto amam ver um navio de limpeza imaculada, que promovem vigorosa caçada ao homem que por acaso deixa cair uma migalha de bolacha no convés quando o navio oscila com o mar, que todos eles balancem em suas macas com os marinheiros; e logo ficarão enjoados desse encharcar diário dos conveses.
Seria o navio uma bandeja de madeira para ser esfregado todas as manhãs antes do desjejum, mesmo com os termômetros a zero grau, e todos os marinheiros de pés descalços sob a inundação com eritemas? Enquanto isso, o navio traz consigo um médico bem ciente da grande máxima de Boerhaave: “Mantenha os pés secos”. Ele tem uma grande quantidade de pílulas para dar quando você é acometido de febre, em consequência dessas atividades; mas jamais protesta no princípio — como seria seu dever — contra a causa da febre.
Durante as agradáveis noites de vigília, os oficiais a passeio, do alto de suas botas de salto, atravessam os conveses com os pés tão secos quanto os dos israelitas; no raiar do dia, no entanto, volta o roncar das águas, e os pobres marinheiros são quase tragados por elas, como os egípcios no mar Vermelho.
Ah, quantas febres, gripes e calafrios não surgem! Não há forno aconchegante, grelha ou lareira para irmos; não — a única maneira de mantermo-nos aquecidos é alimentar a raiva abrasadora e imprecar contra o costume de todas as manhãs de um navio de guerra serem dedicadas à faxina.
Imagine a cena. Digamos que você vá a bordo de um navio de combate, e nele encontre tudo escrupulosamente limpo; você vê todos os conveses safos e luminosos como as calçadas de Wall Street numa manhã de domingo; não se depara com sinal de dormitório para marinheiros; e maravilha-se ante a mágica que possibilitou tudo isso. Pois leve em conta que, nessa estrutura a um só tempo complexa e desimpedida, praticamente mil mortais têm de dormir, comer, lavar-se, vestir-se, cozinhar e levar a cabo todas as necessidades e funções comuns ao ser humano. O mesmo número de homens em terra firme decerto formaria um vilarejo. É portanto crível que esse extraordinário asseio e, em especial, esse desimpedimento de um navio de guerra seja atingido senão pelos mais rigorosos éditos e um sacrifício radical, no tocante aos marinheiros, dos confortos domésticos da vida? Que fique claro, os próprios marinheiros em geral não reclamam dessas coisas; estão habituados a elas; mas o homem pode se habituar aos mais duros costumes. E é porque se habitua que por vezes não se queixa.
De todos os navios de guerra, os americanos são os mais excessivamente limpos e por isso têm grande reputação; do mesmo modo, sua disciplina geral é a mais arbitrária.
Na Marinha britânica, a tripulação rancha à vontade em mesas que, entre as refeições, são içadas do caminho. Os marinheiros americanos rancham no convés e pegam suas bolachas quebradas, ou “farelos de aspirante”, como aves no entorno de um celeiro.
Mas se esse desimpedimento numa fragata americana é, de todo modo, tão desejável, por que não imitar os turcos? Na Marinha turca não existem caixas de rancho; os marinheiros enrolam seus utensílios num capacho e os deixam sob um canhão. Tampouco têm macas — eles dormem em qualquer lugar do convés em seus próprios “gregos”. Ademais, do que um homem de um navio de guerra mais precisa para se abrigar do que a própria pele? Nela há espaço o bastante; e, se ao menos soubesse como girar a própria espinha como uma vareta de espingarda, seria espaço suficiente para se virar sem perturbar o vizinho.
Entre todos os marinheiros de fragata, é uma máxima que navios muito asseados são como o Tártaro para a tripulação, e talvez se possa afirmar, sem prejuízo da verdade, que, quando se vê um navio em tais condições, algum tipo de tirano se avizinha.
A bordo do Neversink, como noutros navios nacionais, prolongava-se a zorra dos conveses como punição aos homens, em particular quando as manhãs eram brutalmente frias. Esse é um dos castigos que um lugar-tenente de turno pode, livre de qualquer constrangimento, impor à tripulação sem que infrinja o estatuto que reserva unicamente às mãos do capitão o poder de punir.
O horror que os marinheiros dos navios de guerra têm por essas prolongadas zorras sob clima frio e desconfortável — com os pés descalços expostos à surriada das inundações — é ilustrado numa estranha história, bastante disseminada entre eles e curiosamente tingida de suas proverbiais superstições.
O primeiro lugar-tenente de uma chalupa de guerra inglesa, severo disciplinador, estava particularmente preocupado com o asseio do tombadilho. Numa dura manhã de inverno em alto-mar, quando a tripulação já lavara, como sempre, aquela parte da embarcação e guardara as zorras, esse oficial foi ao convés e, depois de inspecioná-lo, ordenou que de novo se trouxessem as zorras e devocionários. Descalçando mais uma vez os sapatos de seus pés congelados e enrolando as barras das calças, a tripulação ajoelhou-se para a tarefa; e, em posição de suplicantes, silenciosamente invocou uma maldição contra o tirano; rogando, uma vez que retornasse à coberta, que nunca mais deixasse a praça-d’armas com vida. As súplicas aparentemente foram atendidas; pois, logo depois de ter sido acometido de um derrame paralisante à mesa do desjejum, o primeiro lugar-tenente foi retirado da praça-d’armas dos oficiais com os pés à frente, morto. Depois de baldeado o cadáver no mar — assim diz a história —, as sentinelas no passadiço deram-lhe as costas.
Para que se faça justiça à parcela humana e sensível do rol dos capitães da Marinha americana, é preciso acrescentar que eles não são tão exigentes, sempre e em quaisquer condições climáticas, com a manutenção da imaculada limpeza dos conveses; tampouco obrigam os homens a esfregarem as tábuas até que brilhem e a polirem as cravilhas de arganéu; mas dão a toda aquela estrutura cheia de ornamento uma bela demão de tinta preta, que é mais adequada à guerra, conserva melhor e dispensa os marinheiros de um aborrecimento perpétuo.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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