terça-feira, 29 de março de 2022

Entrando em um novo mundo

A história do primeiro dia de meu pai no mundo onde ele iria viver talvez seja melhor contada por um homem que trabalhou com ele, Jasper “Buddy” Barron. Buddy era vice-presidente da Bloom Inc., tendo assumido o posto depois que meu pai se aposentou.
Buddy se vestia com elegância. Usava uma gravata amarelo-vivo, um terno azul-marinho risca de giz de executivo, sapatos pretos e meias finas, apertadas, quase transparentes, do mesmo tom de azul do terno, que subiam até uma altura indeterminada de suas pernas. Ele tinha um lenço de seda espiando por cima do falso bolso do lado esquerdo de seu terno, como se fosse um ratinho de estimação. E foi o primeiro e único homem que conheci que tinha realmente têmporas grisalhas, como dizem nos livros. O restante do cabelo era escuro, cheio e saudável, e o repartido que formava uma longa linha no couro cabeludo cor-de-rosa parecia uma estrada no meio do campo de sua cabeça.
Quando contava sua história, ele gostava de se recostar na cadeira e sorrir.
O ano era mil novecentos e alguma coisa”, ele começava. “Há mais tempo do que queremos lembrar. Edward tinha acabado de sair de casa. Tinha 17 anos. Pela primeira vez na vida, estava por sua própria conta, mas se preocupava com isso? Não, não estava preocupado: sua mãe lhe dera uns poucos dólares para se sustentar — dez, talvez doze — mais dinheiro, de todo modo, do que ele jamais tivera na vida. E ele tinha seus sonhos. Sonhos são o que move um homem, William, e seu pai já sonhava com um império. Contudo, olhando para ele no dia em que saiu da cidade em que nasceu, você não teria visto mais do que um rapaz jovem e bonito, só com a roupa do corpo e furos no sapato. Talvez você não tivesse enxergado os furos no sapato, mas eles estavam lá, William; os furos estavam lá.
Naquele primeiro dia ele caminhou cinquenta quilômetros. Àquela noite, dormiu sob as estrelas, numa cama feita de agulhas de pinheiro. E foi naquela noite que a mão do destino cutucou seu pai pela primeira vez. Pois enquanto ele dormia dois homens apareceram, bateram nele, roubaram todo seu dinheiro e o deixaram quase morto. Ele sobreviveu por pouco e, no entanto, trinta anos depois, quando me contou essa história pela primeira vez — e esta para mim é uma das melhores de Edward Bloom —, disse que se tornasse a encontrar aqueles dois homens, os dois malfeitores que o espancaram quase até a morte e levaram todo seu dinheiro, agradeceria a eles — agradeceria — porque, de certo modo, os homens determinaram o curso do resto de sua vida.
Na época, é claro, quase morto no escuro daquela floresta estranha, ele não estava nada agradecido. De manhã, porém, já estava bem descansado, e, embora sangrando em diversas partes do corpo, começou a andar, sem saber para onde estava indo e sem se importar mais com isso, simplesmente andando, para a frente, sem parar, pronto para o que a Vida e o Destino tivessem reservado para ele. Foi quando viu um velho armazém, e um velho diante dele, balançando-se numa cadeira para a frente e para trás, para trás e para a frente, que olhou assustado para a figura ensanguentada que se aproximava. Ele chamou a mulher e ela chamou a filha, e em meio minuto eles providenciaram uma panela de água quente, um pano e um monte de ataduras feitas de um lençol que rasgaram em tiras. E ficaram esperando por Edward, que se aproximava mancando. Eles estavam prontos para salvar a vida daquele estranho. Mais do que prontos: estavam determinados.
Mas é claro que Edward não deixou. Não podia permitir que eles salvassem sua vida. Nenhum homem com a integridade de seu pai — e existem poucos, William, pouquíssimos e raros de encontrar — iria aceitar essa caridade, mesmo sendo uma questão de vida ou morte. Pois como ele poderia viver consigo mesmo, se realmente sobrevivesse, sabendo que sua vida estava tão inexoravelmente ligada à de outras pessoas, sabendo que não era dono de si mesmo?
Então, mesmo sangrando, e com uma das pernas quebrada em dois lugares, Edward achou uma vassoura e varreu a loja. Depois pegou um pano e um balde, pois na pressa de fazer a coisa certa tinha se esquecido completamente das suas feridas abertas, que sangravam abundantemente, e só percebeu ao terminar de varrer que tinha deixado uma trilha de sangue na loja inteira. Ele então passou o pano. Esfregou. Ficou de joelhos e esfregou o chão com um pano enquanto o velho, a esposa e a filha o observavam. Eles estavam atônitos. Maravilhados. Viam um homem tentando remover as manchas do próprio sangue de um chão de madeira. Era impossível, impossível — mesmo assim ele tentava. A questão é esta, William: ele tentou até não poder mais, até cair de cara no chão, ainda agarrado ao pano — morto.
Ou pelo menos foi o que eles acharam. Pensaram que ele tivesse morrido. Correram para o cadáver: ainda havia um pouco de vida nele. E numa cena que quando seu pai descrevia sempre me fazia lembrar da Pietà de Michelangelo, a mãe, uma mulher forte, ergueu-o nos braços e o pôs no colo, aquele jovem, moribundo, rezando por sua vida. Parecia inútil. Mas enquanto os outros se amontoavam ansiosos ao redor, Edward abriu os olhos e disse o que poderiam ter sido suas últimas palavras, disse-as para o velho cuja loja ele percebera imediatamente que não tinha fregueses, disse o que poderia ter sido seu último suspiro: ‘Anuncie’.”
Buddy deixava a palavra ecoar pela sala.
E o resto, como costumam dizer, é história. Seu pai se recuperou. Logo estava forte de novo. Ele arava os campos, catava as ervas daninhas do jardim, ajudava na loja. Andava pelas estradas do campo pregando cartazes, anunciando o Armazém Campestre de Ben Jimson. Aliás, foi ideia dele chamá-lo de armazém “campestre”. Ele achou que parecia mais simpático, mais atraente do que simplesmente “armazém”, e ele tinha razão. Foi também nessa época que seu pai inventou o slogan “Compre um e leve um de graça”. Cinco palavrinhas, William, mas elas transformaram Ben Jimson num homem rico.
Edward ficou com os Jimsons por quase um ano, juntando seu primeiro pé-de-meia. O mundo, como uma esplêndida flor, abriu-se para ele. E como você pode ver”, ele dizia, mostrando as extravagâncias em couro e dourado do seu escritório e fazendo um pequeno aceno em minha direção, como se eu também não passasse de um produto da criatividade legendária de meu pai, “para um rapaz de Ashland, Alabama, ele se deu muito bem.”

Daniel Wallace, in Peixe Grande 

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