terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Cartas para minha avó | 4

Apesar das durezas reproduzidas e reforçadas pelo racismo, você sabe que vivíamos momentos felizes lá em casa, vó. Meu pai lia pra gente, nós brincávamos na rua e minha mãe, quando não estava exaurida pelos trabalhos domésticos, era bem-humorada. A vida era simples, mas não nos faltava nada. Você sabe como eu era falante e inteligente, como meus pais gostavam de me exibir para parentes e amigos.
Ir pra escola, porém, foi como desaprender a ter um espaço seguro. Mesmo estudando no Colégio Moderno dos Estivadores, destinado aos filhos e netos de trabalhadores, os xingamentos eram constantes e as professoras nunca me escolhiam para protagonizar nada. Aos poucos, fui criando proteções.
As educadoras e os educadores não tinham o mínimo preparo para lidar com questões raciais. Quando eu reclamava para a professora sobre alguma ofensa, ela dizia para eu não ligar. Se eu respondia, as ofensas se multiplicavam. Na segunda série, havia uma menina de nome Sabrina que adorava implicar comigo. Ela fazia piadas durante a aula, me perseguia no recreio. Sabrina era daquelas loiras com estojo automático, canetas coloridas com cheiro de chiclete e caixa grande com vinte e quatro canetinhas. Seus cadernos eram bem encapados, sua mochila era grande e rosa e seu uniforme engomado. O sonho das minhas professoras e dos meus professores, a pequena musa dos meninos em seus namoros imaginários.
Você dizia que eu era uma menina linda, meus pais também, mas quando se tem oito anos isso não basta. Como nós éramos em quatro irmãos, o meu pai comprava os materiais mais simples, para que todos tivessem o seu. Eu sonhava com o estojo que Sabrina e as outras meninas brancas tinham, e agradecia quando alguma delas, em raros atos de gentileza, me deixavam brincar com eles. Mas Sabrina, não, ela nunca emprestava seu material. Mesmo seu pai sendo estivador, como o meu, ela se gabava de ser a “mais rica”, porque era descendente de italianos e seu avô, ao morrer, deixou bens para a família.
Meu pai, que ficou órfão de pai aos seis meses e morava com a mãe e a irmã “numa maloca no morro da Penha” — como ele gostava de dizer quando nos dava aquelas broncas intermináveis —, não teve a mesma “sorte”. Morou em cortiços com minha mãe, depois numa casa de madeira no Guarujá — lá, quando chovia, “até cobra entrava”, ela sempre lembrava. Os três primeiros filhos nasceram nessa casa. Eu, por conta do bolão da loteria esportiva, já nasci no apartamento de dois quartos entre os canais 4 e 5, em Santos. Graças ao empenho da minha mãe em ir à Caixa Econômica Federal para renegociar as parcelas do financiamento, meus pais conseguiram quitar o apartamento quando eu ainda era adolescente. Foi lá que vivi os primeiros vinte e dois anos da minha vida, vó, sem regalias.
Sabrina podia não entender nada de teorias racistas, mas sabia aproveitar seus privilégios para sempre se colocar à frente e tentar controlar e comandar tudo. Ela era como a líder da turma. Uma vez eu pedi uma canetinha emprestada para uma colega, a Ana Carolina, uma garota branca e loira — outra princesa da escola. Antes que ela pudesse responder, Sabrina interveio: “Djamila é preta, então empresta só a canetinha preta pra ela”. Ana Carolina hesitou, mas riu, e as outras crianças da sala também. Era sempre assim, elas nunca me defendiam ou recriminavam o que ouviam, era quase intuitivo o desprezo que sentiam.
Cansada daquelas humilhações, respondi sem pensar para Sabrina: “Na hora do recreio eu vou te pegar”. O que eu havia dito somente para me defender, virou uma sentença. No recreio, enquanto eu conversava com uma colega da outra sala, Sabrina se aproximou: “Você não disse que ia me pegar?”. E logo uma rodinha se formou, incentivando o espetáculo.
Senti que não tinha opção e bati em Sabrina. Conforme batia, a roda gritava, se comprazendo com algo que poderia ter sido evitado. Ao ouvir a gritaria, dona Assunção, inspetora da escola, apareceu. Assim que a avistei, com seus braços fortes e avental azul, congelei e me afastei da minha adversária. Eu havia ganhado a briga, então sabia que não apanharia em casa. Meu medo era, na verdade, de levar bronca da diretora, famosa por ser linha dura.
Eu sabia que todas as crianças negras que revidavam eram advertidas, suspensas ou passavam horas na diretoria. As professoras nunca nos defendiam, então que opções tínhamos? Mesmo ganhando a briga, se eu fosse suspensa ou algo do tipo, a punição lá em casa seria dura. Com um frio na barriga, imaginei o pior. Foi Sabrina que, sabendo o quanto a escola era devota de meninas como ela, quebrou o silêncio que se formou no pátio: “Dona Assunção, a Djamila me bateu”, e desabou a chorar. Eu, sabendo o quanto aquela escola repudiava meninas como eu, já tinha dado como certa a surra que levaria em casa após ficar horas ouvindo broncas da diretora. É a dupla violência: somos violentados pelo racismo e por enfrentá-lo. Porém, para minha surpresa, dona Assunção respondeu: “Bem feito, Sabrina, quem mandou você mexer com ela?”.
Naquele momento, vó, sem saber racionalizar direito, eu me senti em casa, segura. Além disso, ganhei o respeito de algumas crianças que também não gostavam de Sabrina, e essa foi uma das raras vezes em que fui vista como uma vencedora — e não como a “neguinha feia do cabelo duro”. Sem saber, dona Assunção me mostrou que era importante lutar para ser respeitada. Ela foi, por um breve momento, a música que me livrou da náusea. Ali, sem saber, ela me fez perceber que a sensação de direito adquirido era melhor que a sensação de dever cumprido.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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