terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Capítulo sete | A língua infértil

Os guerreiros submetiam Honra a rituais de purificação para que seu corpo aceitasse sem vulnerabilidade o uso de uma língua inimiga. Era fundamental que pudesse entoar sem estar abrigado nesse discurso, para o empunhar enquanto instrumento mas nunca enquanto lugar de caber.
Honra,
diziam,
não podes caber em palavra alguma. Terás de entoar como quem liberta a onça, mas não podes seguir enquanto espírito assombrando o corpo da onça. E a palavra fará sua maldade porque está vocacionada para a maldade, mas tu terás de estar fora da palavra para que não te possam abater no instante em que ela coagular o seu significado.
O jovem guerreiro confirmava aprender. Escutava as orações dos ancestrais, pintavam sua pele, escolhia agora cada ideia e garantia que sim. Era o que queria fazer. E lentamente foram entrando as palavras brancas em sua boca e ele as foi usando confiante e com desdém. Entoava:
sabem ao sujo das piores porcarias. Palavras que sabem ao sujo das piores porcarias, como as carnes mortas há muito tempo. São palavras de animais mortos por dentro.
Os guerreiros tardios acenavam em confirmação. Assim era. Uma língua azeda que chegava a feder na boca. Era feita para muita miséria e toda a tristeza. E eles avisavam:
não medites nesta língua. Não demores nela. Usa igual à arma que se toma apenas no instante do ataque. Antes e depois disso, ignora.
E o guerreiro jurava fazer assim, mas uma língua era de verdade como um lugar aonde se ia chegando, e o feio, sem dar conta, abria dentro de si um espaço que até então nunca contemplara.
Para se manter lúcido, o guerreiro jovem atarefava-se na escavação da piroga e voltava a ponderar como haveriam de fazer quando chegassem as tempestades. E foi como entoou:
quero ser teu primeiro salto. Quero ser o primeiro aviso. Eu estarei acordado estudando as nuvens e espiando a oportunidade de qualquer trovão. Se for de riscar relâmpago, eu vou saber bem antes, o suficiente para que tu já estejas no alto da maior tatajuba, perto das próprias nuvens, ali ao lado das aves mais levantadas.
E o guerreiro Pé de Urutago recebia Honra com alguma hesitação. Considerava que sua juventude, uma opacidade tão recente e ainda sem convívio com nenhuma feminina, facilmente se tornaria apenas um embaraço, uma inexperiência a que ele não se poderia dar ao luxo. Mas confirmava por gentileza. Seguia trabalhando e seguia gentil, como a isso também era obrigado.

*

Então, o guerreiro de corpo ocupado pedia licença ao tremendo animal líquido e entoava as palavras brancas, uma a uma. Deixava que se escutassem inteiras, como redondas e gordas a saírem de sua boca, oferecendo-lhes a oportunidade de se consumarem nas terras abaeté para revelarem seus poderes. Queria conhecê-las, observá-las, medir suas forças. Estava ensinado a pensar que não criavam. Muito ao contrário. As palavras brancas destruíam. E ele procurava entender se as mesmas coisas da beleza abaeté eram tornadas vis na fealdade branca. Poderia o filhote de tapir ser um bicho grotesco quando dito pela língua branca. Perguntava ele. E os guerreiros tardios lhe ensinavam o nome do tapir e Honra quase comovia de tristeza. Tão grande crueldade com o bicho dar-lhe um nome assim. Foi pela mata espiar onde havia um tapir e entoava seu nome abaeté observando a beleza. Entoava depois seu nome branco e seus olhos notavam como outra coisa poderia estar ali movendo-se. Uma coisa menos bela, ferida pela palavra mal-intencionada, uma palavra insuportável. Ele entoou:
uma língua infértil. Germina nada dentro. Desce sobre seus significados como algo que sufoca. Se dita demasiadas vezes, vai matar. Vai acabar com o ar, o sangue do vento, o invisível.
Pai Todo lhe garantiu que não poderia matar o inimigo branco por haver capturado suas palavras, seus nomes. O branco estaria defendido por outra divindade, uma pior, perturbada, sem paz.
O primeiro mar seguia quieto em sua tarefa, cintilando seu modo de respirar e não devolvia reacção. As palavras inférteis do branco era impotentes perante a maravilha do órgão vital. O jovem guerreiro confiava que enfeitiçava a língua inimiga com mestria. Saberia enfeitiçá-la sem erro e a caminho da matança. Honra sentia estar a caminho. Cada vez que entoava, ele chegava mais perto de passar a lâmina no corpo branco que necessitava de abater.
Por se tornar adulto, o feio dormia numa maloca distinta da dos pais, era imperioso que escolhesse por juízo próprio e não fosse humilhado por nenhuma orientação piedosa. Escolhia um pouco de chão próximo de alguma feminina que tivesse vontade de cativar. Suas preocupações intensas não podiam muito contra certo fervor do corpo. Ele procurava manter toda a sobriedade, uma lucidez pela qual devia justificar sua glória de herói mais tarde, mas o corpo meditava sozinho acerca de gestos simples, como os de mexer numa feminina, sentir seu cheiro, provar seu paladar. As femininas eram frutos húmidos que ofereciam à boca dos guerreiros o melhor dos alimentos. Na sua idade, Honra deveria estar admitido à companhia de femininas mais seduzidas e também atentas às temperaturas de seus próprios corpos. Mas não havia modo de isso acontecer.
Na máscara da noite, onde seu movimento lembrava mais a vontade do que a cor, o guerreiro passava entre os que se deitavam, e chegava a seu canto sempre sozinho e à espera. Tinha vindo da mata onde se mexera para acalmar. Quando vertia o corpo para dormir, era importante estar capaz de o fazer, sem que a musculação inventasse por si mesma uma ideia de proximidade com as femininas. Quando assim acontecia, mesmo durante o sono, o guerreiro rebolava de seu canto e perigava pelo chão tão inconsciente quanto físico. Quem houvesse de estar perto lhe batia para que acordasse e recolhesse a mordedura prestes a acontecer. Aquele silêncio também era a entoação daquilo que se procurava esconder. O silêncio podia revelar. Podia ser incrivelmente falante.
Naquela noite, ainda que se tivesse mexido na mata, o corpo de Honra musculou seus baixios e impacientou seu sono. O guerreiro branco moveu e saiu pelo chão sem acordar nem ficar quieto. Seu desassossego era pelo odor em redor e ele procurava.
Quando alguém sentiu sua mão num toque quase nada, bateu. Honra acordou naquele modo rastejado e envergonhou profundamente. Fugiu da maloca à míngua do brilho da lua e foi lamentar como doía sua cabeça batida e como era insuportável seu cruel adiamento.
Alguns que soam mantinham caminho pelo terreiro e o guerreiro queria deixar-se sozinho, ficar sem conversa nem distracção. Decidiu que sairia da cerca da aldeia e andaria até às areias, a espiar o vazio, a ver as pirogas deixadas para escavação. Decidiu que sairia pela noite sem maior sono, apenas à deriva porque a deriva encontrava acasos que podiam estar por ali à espera havia muito.
Na mata mais densa, desviado do chão das onças e precavido para onde assomavam os jacarés, Honra começou a caminhar mais corrido e ansioso por chegar ao areal e encarar o primeiro mar. Sabia mal porque haveria de ceder àquela pressa, não entendia, mas ficou urgente e algo parecia empurrá-lo naquela direcção. Subitamente, bem antes de avistar o tremendo animal líquido, Honra escutou um ruído de boca falante, um vocábulo, alguém que entoara por perto. O guerreiro branco deteve-se e melhorou o silêncio. Se fosse entoada nova palavra, poderia capturar seu sentido e saber talvez de quem viria, para que serviria na escuridão conspiradora da mata. E novamente escutou e era mais um gemido do que um vocábulo. Significava uma dor ou um esforço. Um som que abrigava um cansaço. Honra caminhou mais na direcção e foi suavizando seus gestos para espiar no pouco luar filtrado pelas copas quem andaria ali atarefado com que razão. Quando a mata abriu um quase nada, o guerreiro branco reconheceu a figura em dobro de Pé de Urutago que carregava pelo chão alguma coisa e imediatamente entoou:
sagrado Pé de Urutago, em que posso ajudar.
O grande guerreiro sobressaltou e respondeu:
sagrado Honra, podes ajudar regressando mudo e sem notícia à aldeia.
Mas o guerreiro branco abeirou mais e julgou que eram agora semelhantes para o conhecimento. Haveriam de debater as tarefas estranhas e colaborar, poderia interferir de maneira a dar seu contributo às graças da comunidade. Era agora opaco. Maturara. Tinha o queixo mais levantado, o espírito mais polido e estava preparado para ser responsável e brilhante. No passo que deu, imediatamente Pé de Urutago lhe vociferou:
sagrado Honra, fica onde estás. Carrego um fardo a que nossa educação me obriga por meio solitário. Tua proximidade é um perigo. Convoco chefia de Pai Todo para te pedir que fujas de mim. Afasta teu jeito curioso, tua bondade, afasta tua esperança. O que faço nesta noite é ofício que me chega desde muito antigamente, e não pode haver notícia disso. Parte, sagrado Honra, parte para tua normalidade e celebra tua paz. Preciso ir. Preciso ir.
Era tempo sem alteração. As noites vinham caindo sem conteúdo. Apenas ausência. Não se cobriam os céus, não chovia, o vento tinha sopro nenhum, as presas eram comuns e simplesmente alimentares. Os abaeté viviam para a fome, sem perigo maior do que o da fácil fome. Pescavam e caçavam. Os sóis passavam nessa bênção. Por isso, Honra soube que não poderia ser caminhada para subir ao clarão, agarrar o mudador osso do relâmpago, iniciar nova era. Não havia pressentimento de tempestade. A noite era inútil, servia o sono, era gentilmente inútil. Assim, frustrado com a severa chefia do mais velho, talvez até ofendido, Honra recuou um passo e entoou:
sagrado Pé de Urutago, quero ser teu amigo. Acredito que é tempo de chegar a grande profecia e acredito que isso será porque o branco cerca nossas terras. É tempo de a Verdadeiríssima Divindade se pronunciar. Eu sei que ela entoará e sei que minha pele é a última maldade. Estamos no limite de todas as fúrias. A própria mata se adensou. Reparaste em como se fecharam os restos de chão e tudo nasceu. Reparaste em como a mata é mais alta.
Perguntou.
Pé de Urutago, impaciente, por um resto de respeito, quis saber:
e que andas por esta distância a fazer, tão dentro da noite, vulnerável, sem caça nem guerra. O que aconteceu.
O feio, humilhado mas bravo para ser igual, opaco e corajoso, entoou:
o musculado do corpo inventa um sonambulismo grave. Rastejo pela maloca ao odor das femininas e acordo sempre batido e sem ninguém. Entardeço nesta violência. Esta noite, depois de até ter mexido no próprio corpo antes de deitar, depois de mesmo assim sonambular como um verme, senti que devia caminhar. Talvez seja propósito deste incómodo, talvez seja uma inspiração para te encontrar, sagrado Pé de Urutago, uma intuição que esteja a receber da encantaria. Não te parece, grande guerreiro. Não te parece que fui enviado para te ser útil.
No entusiasmo de entoar seu pressentimento, o guerreiro de corpo ocupado andou um pouco mais e novamente Pé de Urutago lhe vociferou:
sagrado Honra, terei de te matar se abeirares mais um passo. Afeiçoa tua vida para a aldeia. Não hesites. Afeiçoa.
O guerreiro branco, estupefacto, recuou e deitou corrida a caminho do areal. A ameaça aberrante de Pé de Urutago sobrava em seu pensamento como um absurdo que não podia descodificar. Enquanto isso, percebeu nada daquilo que ele carregava. Percebeu nada do esforço que fazia. O que fazia.
Chegado ao areal, sem saber como decidir, Honra desceu sobre os joelhos e olhou para dentro de si mesmo. Pensou:
não sinto.
Se o mataria, certamente teria de operar alguma traição. Pensou depois assim, que o grande guerreiro traía a dignidade abaeté numa noite discreta como aquela. E subiu sua temperatura. Ferveu seu espírito confuso, e ele entoou a palavra que caça à distância. Aquela que leva sua mordedura intacta, transpondo a mata inteira. Honra entoou:
maldito.
O som conflituou com a quietude. A palavra caçou o outro.
Muito afastado dali, Pé de Urutago feriu em seu silêncio. Alguma coisa o golpeou na certeza brava de que o guerreiro branco, ignorante e despreparado, o dera como indigno, talvez como um inimigo. O grande guerreiro sofreu. Seguiu seu ofício sofrendo.
Por causa disso, chorou.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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