Foto: autor desconhecido
Tristeza
eu tenho porque muitas das coisas que moram na minha alma não podem
ser comunicadas. Por mais que eu diga e explique, quem ouve não
entende. É o caso dos carros de bois. Os que não sabem pensam que o
carro de bois era um meio de transporte primitivo. Os que sabem,
sabem que o carro de bois, antes de ser um meio de transporte, era um
instrumento musical. A começar do formato. Visto de cima, o seu
corpo se parece com o corpo de um violino. O orgulho do carreiro era
o canto do seu carro. E até jogava água no buraco da roda para que
o canto saísse mais sofrido. Era um lamento sem fim, gemido
apaixonado. O causo que mais me comove sobre os carros de bois me foi
contado pela Maria Alice, que tem tantos fantasmas na alma quanto eu.
É sobre o Zeca Carreiro, que carreava em Mossâmedes, cidade no
interior de Goiás, mas, como se sabe, Goiás é uma extensão de
Minas Gerais... Chegando perto da cidade, ele se apressava, jogava
água no buraco da roda, queria que o lamento do seu carro fosse
ouvido e sofrido por todo mundo. “Tá cantano apaixonado...”, ele
dizia orgulhoso. E assim entrava na cidade, com o orgulho de um
grande músico que sabe tocar o seu instrumento.
O
tempo passou. Zeca Carreiro foi atacado pelo mal que ataca muitos
músicos, a surdez. Igual a Beethoven, Zeca Carreiro não mais ouvia
a música que seu carro tocava. Mas ele continuava a carrear, tinha
de carrear — era o seu ganha-pão. Seu neto o ajudava, ia à frente
dos bois como guia. Chegando perto da cidade, sem nada ouvir, ele
perguntava ao neto: “Zinho, o carro está cantano?”. “Tá sim,
vô”, ele confirmava com um aceno. “Cantano apaixonado?”,
insistia o avô. O menino sorria, o avô compreendia. Zeca Carreiro
se aprumava como nos velhos tempos e entrava na cidade como um
regente de orquestra.
Hoje,
muitas vezes, na modorra da rede, eu ouço os carros de bois cantando
no quente do depois do almoço.
Rubem Alves, in O velho que acordou criança
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