— Meu
filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu
mesmo às vezes penso que é ilusão. Com oito anos, imagine. Estava
brincando na pracinha lá da vila quando passaram uns homens e
olharam muito pra ele. Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma
lindeza de Menino Jesus, aí um dos homens falou assim pra ele. Quer
fazer um teste, ó garoto? O que é teste? ele respondeu. Aí o homem
explicou, não sei bem qual é a explicação, levaram ele pra um
edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos dele, depois
falaram assim: Você foi aprovado. Aí ele se espantou: Mas eu não
fiz exame, que troço é esse? Não é nada de exame não, eles
responderam, você foi aprovado pra fazer um comercial, tá bem? Ele
neca de saber o que é um comercial, nem eu, mas agora eu fiquei
sabendo, é uma coisa à toa, a pessoa nem precisa falar, fica só
fazendo uma coisa, comendo doce de leite, devagarinho, com uma
carinha alegre, quando acaba passa a língua nos beiços, assim,
olha, e pisca o olho, ele é tão engraçado, antes de acabar de
comer ele já estava fazendo isso, um negócio. Aí mandaram ele de
volta pra casa, não, antes falaram assim pra ele: manda seu pai aqui
na agência receber o cachet. Ele ficou espantado, falou assim: Que
troço é esse? Eles responderam. É tutu. Aí ele baixou a cabeça e
respondeu baixinho: Eu não tenho pai. E mãe você tem? Ele
respondeu que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então manda ela
aqui, mas o garoto é esperto, deu uma de sabido: Eu mesmo não posso
receber? se fui eu que fiz tudo sozinho. Não, você não pode, tem
que ser sua mãe, diz a ela que venha das duas às quatro, trazendo
carteira de identidade. Bonito, e eu que nunca tive carteira, já
pelejei pra tirar uma, dei duro, pedi pro compadre Julião me quebrar
esse galho, compadre explicou que carece antes tirar certidão de
nascimento, essa é muito boa, então a gente tem que provar que
nasceu, eu não estou viva com a graça de Deus e forte e
trabalhando? O pior é que nem sei se fui registrada lá em Pilão
dos Palmares, chão do meu nascimento, não tenho parentes neste
mundo, só tenho no outro, e nem a poder de oração consegui até
hoje tirar o papel da tal certidão, afinal eu falei assim pro
compadre: Deixa pra lá, sem carteira vivi até hoje, sem ela vou
viver até Nosso Senhor me fechar os olhos. Vou lá na agência assim
mesmo. Larguei meu serviço. Fui. Tinha um mundão de gente, eu não
sabia quem é que podia me atender, andei rolando de uma sala pra
outra, até que afinal um cara de bigodão, atrás da parede de vidro
com um óculo no meio, falou assim: É comigo, trouxe a carteira? Eu
expliquei que carteira eu não tinha, mas sou lavadeira muito
acreditada na Zona Norte, muitas madamas da rua Conde de Bonfim podem
atestar que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há vinte e cinco
anos que trabalho de lavar roupa. Ele abanou a cabeça, falou assim:
Nada feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho
trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o trabalho dele, tanto
que prometeram pagar um tal de cachet, como é que pra pagar a ele é
preciso a carteira de outra pessoa, o senhor acha isso direito? Ele
não respondeu nada, tornou a abanar a cabeça e eu fiquei matutando:
O que tu vai fazer pra sair dessa, Clementina da Anunciação? E
comecei a chorar. Aí eles me viram chorando, ficaram com pena de
mim, um barbudo que passava disse assim pro bigodão: Paga a ela,
Reginaldo. O bigodão resmungou: Tá legal, e me deu um papel passado
em três folhas iguais, pra eu assinar nelas todas. Aí eu disse: O
senhor me desculpe, mas eu não sei escrever, a cabeça não dá.
Então nada feito outra vez, o bigodão respondeu. Aí, eu não tinha
mais vontade de chorar e disse assim pra ele: Escuta aqui, moço,
quanto é que meu filho tem pra receber? Ele respondeu: cinquenta
cruzeiros. Ah, é isso? respondi. Pode ficar pra agência. Perdi meu
dia de trabalho, gastei trem, gastei ônibus, andei a pé neste
solão, não vou me chatear por causa dessa mixaria. Um cara que
estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora esses
cinquenta mangos? E daí? respondi pra ele. Meu filho vale muito
mais, a gente não fica mais pobre por causa disso, ele agora é
artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria ajudar, vai ganhar milhões.
Nem precisa ganhar, só o orgulho que eu sinto por ele ter passado no
teste! Saí de lá com esse orgulho bonito no coração, meu filho é
artista, meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me
olhavam admirados mas eu nem dei bola, fui pra casa e ligo a
televisão o dia inteiro, trabalho vendo ela, até chegar a hora de
meu filho aparecer no comercial comendo doce de coco. Pobre tem
televisão, na vila todos têm, vai ser um estouro quando meu boneco
aparecer e piscar o olho, então isso não vale mais que cinquenta,
que quinhentos ou cinco mil cruzeiros, ou todos os cruzeiros do
mundo?
E
seu rosto enrugado cintilava de glória.
Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica
Nenhum comentário:
Postar um comentário