Vi
no Cairo o mais solene espetáculo do mundo. Quem, na França, já
viu iluminado à noite um castelo do Loire ou o de Versalhes, num
desses espetáculos Son et Lumière em que as luzes vão cambiando
suavemente suas cores enquanto a música se alteia e uma voz se eleva
para evocar, solene e poética, a passagem dos séculos sobre aqueles
monumentos de pedra — viu apenas o prelúdio do que se faz no
Cairo. Nunca houve uma cena de teatro mais ampla no mundo. Versalhes
tem uma fachada de 550 metros; ali, entre o Nilo e o deserto, ao
ocidente do Cairo, a cena é de dois quilômetros de extensão por
mais de um de profundidade, e até 146 metros de altura. Abrange as
três pirâmides de Gizé: Quéops, Kéfren e Mikerinos — as
pirâmides menores das rainhas e ministros, os templos de pedra, e a
Esfinge.
E
a história que ouvimos é bem mais antiga que a dos castelos
franceses: aqui a História tem 5.000 anos.
Sob
o céu puro do deserto — um pouco à esquerda, Vênus e a lua
minguante descem para o horizonte — uma estranha luz de alvorada
banha a face da Esfinge, e ouvimos a sua voz: “A cada nova aurora
eu vejo erguer-se o Sol na outra margem do Nilo. Seu primeiro raio é
para a minha face, voltada para o Oriente. Há 5.000 anos vejo
erguerem-se todos os sóis de que os homens guardam memória.”
Evoca
depois a construção da maior das pirâmides, do Faraó Quéops, há
4.500 anos.
Cem
mil homens a ergueram, assentando sabiamente três milhões de
pedras, com o peso médio de duas toneladas e meia; as mais belas
dessas pedras vinham das jazidas de Assuã, descendo o Nilo em balsas
imensas. Ali desfilou uma longa teoria de reis, as dinastias
sucederam-se, os reis e os conquistadores curvaram-se diante daquelas
gigantescas sentinelas do deserto à margem do rio sagrado. Ali
esteve Heródoto. Ali surgiram um dia os cristãos e depois os
muçulmanos. “Ali, perante os monumentos eternos, pasmaram
Alexandre, o Grande, César e Napoleão; e tudo o que fizeram foi
erguer com seus passos, por instantes, um pouco de poeira do
deserto.”
Mas
de todos esses tronos e esses túmulos de uma gravidade
impressionante, dessa geometria da Morte e do Eterno, o que mais
importa é uma flor de graça a fragilidade: a Rainha Nefertite. Ali
foram encontradas imagens suas; a mais bela, porém, está no museu
de Berlim, onde fui vê-la com emoção há três anos.
Dizem
que é a mais linda mulher do mundo de todos os tempos.
Talvez
por isto eu esperasse ver algo de perfeito. Vi apenas uma fina cabeça
de mulher encimada por um imenso barrete real de azul e ouro. O
pescoço é fino e gracioso como um colo de cisne ou a haste de uma
flor. A linha firme do queixo, a delicadeza da orelha, o rasgado
estranho dos olhos, a boca sensual e triste com um indefinível
sorriso... Não, ela não é perfeita.
Um
dos olhos parece maior que o outro; o nariz reto é ligeiramente
achatado na ponta. O perfil esquerdo é diferente do direito: mais
expressivo, com o desenho dos músculos e dos ossos da face magra
mais em relevo. Mas são essas irregularidades mínimas que dão uma
impressionante graça humana a essa cabeça imperial e melancólica;
o que vemos não é apenas a imagem de uma rainha de poderes divinos,
é o mistério e a fragilidade de uma linda mulher que há milhares
de anos fascina os que a contemplam.
Vendo
e ouvindo o imenso espetáculo da história daqueles monumentos
eternos, uma noite no Cairo, era na frágil Nefertite que eu pensava
— mulher, flor, sonho de arte que vive para sempre.
Rubem
Braga, in Recado de primavera
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