quarta-feira, 4 de agosto de 2021

A moda é muda

Tizuca parado em frente à loja de roupas masculinas. Ou unissex. Quem sabe lá o que hoje é ou não é roupa do ou roupa da.
Indecisão. Dúvida. Perplexidade. Escolher o quê?
Colarinho italiano arredondado ou colarinho com pontas abotoadas. Os dois?
Colarinho com pespontos, colarinho chemisier? Tudo que há de opção na forma e cara de um colarinho!
Se Tizuca pende para a camisa esporte xadrez, vem o problema: o xadrez do bolso tanto pode ser na direção das linhas como enviesado. Enviesado é melhor, claro. Mas o outro, mesmo de xadrez, tem um toque de social, entende?
Tizuca não é lá muito social, mas a fórmula esporte-social o atrai. Em geral e sempre, ele é mais esporte. Acontece que amanhã pode querer dar uma de social, e então esta camisa aqui vira clássica, pelo artifício de um botão abotoado no colarinho. Versátil.
Vitrine é isso: mostra demais. Devia mostrar só uma camisa de cada vez, a gente conferia, tá bem, não tá: outra. Depois outra. Cinco camisas diferentes, dando tapa no olhar, como é que pode?
Tizuca ainda não chegou ao capítulo calça. Está assuntando a subseção lapela do bolso. Ah, e os botões de quatro furos? Sem quatro furos, infeliz é o botão, e logo esta camisa de palas inclinadas na frente e horizontais atrás, tão bac (Tizuca não fala bacana), perde noventa por cento de carga charmosa, com seus míseros botões de dois furos.
O botão também, na estética do minuto, precisa ter cores contrastantes com a cor ou cores da camisa. E mesmo, por que não? contrastantes entre si. Comprada a camisa, Tizuca vai dar à mãe o trabalho de arrancar três dos botões e substituí-los por outros bem diferentes uns dos outros. A velha trate de arranjá-los, botão é negócio de mãe.
Às calças. Tu não me procurarias tanto se já não me tivesses encontrado. Pascal, vestibular de francês. Por que fui escolher francês? Mas esta calça é aquela que eu sonhei na semana passada, a mesma, a própria. A cor, a linha, o tique-taque. Ninguém é capaz de saber o que seja o tique-taque de uma calça, mas Tizuca sabe, ele que descobriu o fenômeno: há calças com tique-taque, outras sem. A maioria, sem. Certo ruído leve que ela faz quando a gente anda? Não. Certo ritmo, certas dobras harmoniosas? Também não. Tizuca não explica a ninguém, nem a si mesmo. Só ele sabe, e esconde de todos.
A questão é que, sendo a calça sonhada, não é rigorosamente a calça sonhada. Entenda quem quiser ou puder. Verdade, verdade, as calças que sonhamos nunca se realizam em vitrine alguma do mundo, elas foram feitas e desfeitas no momento ideal, que os figurinistas seriam incapazes de assimilar. Bolso embutido na cintura não é o mesmo que bolso inclinado. Tem mais: a barra virada. Esqueceram-se de botar no real a barra virada do meu sonho.
Tizuca, não te resolves? Vais ficar parado a eternidade diante da loja, vestindo com os olhos? Se não és capaz de escolher entre uma calça pied-de-poule e outra pied-de-coq, como escolherás entre duas garotas? Ou duas profissões? Ou…?
Chega de perguntar, tu me engrilas. Tizuca desdobra-se em consciência e alienação. Pergunta-se e recusa-se a responder. Se houvesse nas coisas uma resposta, o rótulo esclarecedor: Sou o que queres. Não sou o que queres. Todas parecem dizer: Afinal, que queres?
A moda. O medo. Medo de não estar na moda. O descompasso. O desequilíbrio íntimo, independente do efeito que possa produzir nos outros o fato de não usarmos aquela camisa que é a absoluta nesta primavera. Por que me visto? Para vocês, mas principalmente para minha imagem no espelho. Nos dois espelhos: o do armário, o de dentro de mim mesmo, Tizuca, dezoito anos, indecisão. E depois…
Depois, Tizuca tem no bolso apenas duzentos cruzeiros, que não dão para comprar a vitrine, e levar para casa e experimentar todas as soluções vestiais e escolher aquela solução, aquele colarinho, aquele bolso, aquela prega. A vida é ondulada, interrogativa, como a minhoca. E muda, feito a moda.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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