Quando Tobias retornou o sol já estava
manso e começava a baixar no horizonte. Estava fraca de fome,
enganei o estômago com os araçás bicados pelos pássaros e caídos
no chão. Encontrei a casa de Maria Cabocla e foi de lá que trouxe a
chama. Ela não se surpreendeu ao me ver, já nos conhecíamos de
vista nas brincadeiras de jarê. Maria disse que não precisava de
lenha. Depois percebeu que eu não respondia e estava parada diante
dela como se aguardasse algo. Aí perguntou se era eu quem precisava
de lenha. Por último, entendeu que queria fogo e me deu uma das
achas que queimavam em seu fogão e que estavam com a ponta em brasa.
De imediato, Tobias abriu um sorriso
quando entrou na casa. Temi por um momento que reclamasse por ter
mexido em suas coisas, por ter tentado arrumar a bagunça, ainda que
não tivesse conseguido fazer tudo naquelas horas que permaneci
sozinha. Mas a diferença era clara. Ele olhava os cantos, a cama
arrumada, o rasgo no colchão de palha de milho costurado – com
linha e agulha que trouxe em minha trouxa –, a mesa limpa, as
moscas que voavam mais distantes, a comida que fumegava no fogão.
Não agradeceu, era um homem, por que deveria agradecer, foi o que se
passou em minha cabeça, mas conseguia ver em seus olhos a satisfação
de quem tinha feito um excelente negócio ao trazer uma mulher para
sua tapera. Fiz um prato farto para ele, postei-me de pé ao seu
lado, esperei que comesse, queria ver em seu rosto o deleite por
provar meu tempero. Comeu ávido, com as mãos, despejava largas
porções de farinha de mandioca em seu prato, até esvaziá-lo.
Joguei as espinhas no mato. Nem esperei que pedisse por mais e repus
o feijão e o peixe. Esvaziou com o mesmo entusiasmo do primeiro.
Deixei que se afastasse para o banho na lata cheia que tinha ido
buscar no rio, ao terminar a minha tentativa de arrumar a casa.
Estava exausta quando entrei para me banhar no Santo Antônio.
Quando a noite caiu, acendi o candeeiro
com o querosene que havia achado misturado ao lixo. Coloquei-me por
perto da luz, sentada para costurar um dos dois lençóis puídos e
com grandes rasgos que havia lavado pela manhã. Estava tomada pela
agonia e tentava me concentrar na agulha. Tobias me cercou, bebia a
cachaça que havia deixado em cima da mesa. Passou a falar do dia,
das reses, de Sutério, dos trabalhos na fazenda. Eu parava por uns
minutos para olhar um pouco para seu rosto, para que não pensasse
que era desfeita minha costurar àquela hora. Para que não
desconfiasse que temia o que estava por acontecer a nós dois, na
mesma cama em que havia batido com o cabo da vassoura para levantar o
pó e que havia costurado. Mas bastava que encontrasse seus olhos
para de imediato desviar para a agulha que rompia a trama do tecido
entrando de um lado a outro. E com o coração aos pulos dizia a mim
mesma “a cada hora, sua agonia”.
Depois que ele me deitou na cama, beijou
meu pescoço e levantou minha roupa, não senti nada que justificasse
meu temor. Era como cozinhar ou varrer o chão, ou seja, mais um
trabalho. Só que esse eu ainda não tinha feito, desconhecia, mas
agora sabia que, como mulher que vivia junto a um homem, tinha que
fazer. Enquanto ele entrava e saía de mim num vai-e-vem que me fez
recordar os bichos do quintal, senti um desconforto no meu ventre,
aquele mesmo que me invadiu pela manhã com o trotar do cavalo. Virei
minha cabeça para o lado da janela. Tentei olhar pelas frestas a luz
da lua que tinha despontado no céu mais cedo. Senti algo se
desprender de seu corpo para meu interior. Ele se levantou e foi se
lavar com o resto de água. Abaixei minha roupa e fiquei de costas
com os olhos no teto de palha procurando filetes de luz. Procurando
alguma estrela perdida, que se apresentasse como uma velha conhecida,
para dizer que não estava sozinha naquele quarto.
No dia seguinte, logo depois que Tobias
saiu para a lida, minha mãe apareceu trazendo Domingas. Tinha um
farnel de comida: um pouco de carne seca, mel, ovos e feijão verde
debulhado. Queria ver como eu estava, saiu cedo de casa, vieram
caminhando aproveitando enquanto o sol ainda não estava a pino.
Senti certo alívio de ver as duas. Salu tinha a apreensão nos
olhos. Se não fosse a vergonha, teria me perguntado se me fiz mulher
direito durante a noite, se ele tinha sido respeitoso comigo. Se
espantaram com a quantidade de entulho que havia separado. Eu estava
agitada, minhas mãos cortavam o ar, Domingas tentava acompanhar meu
raciocínio e ria das minhas tarefas de nova dona de casa. Passamos
horas felizes naquela manhã, mas senti um aperto no peito ao vê-las
se afastarem tomando o rumo para casa.
Tobias retornava ao fim da tarde e a
primeira coisa que fazia era dar uma talagada na garrafa de cachaça
que ficava em cima da mesa. Depois tomava banho ou ia direto se
sentar à mesa para a refeição. Eu parava o que estivesse fazendo
para servir. No começo, parecia apreciar minha comida, sempre
repetia. Depois passou a reclamar que tinha muito ou pouco sal. Que o
peixe estava cru, e me mostrava pedaços em que eu não conseguia
enxergar a falta de cozimento, ou outros que se esbagaçavam com as
espinhas, dizendo que tinham cozido demais. Nessas horas eu ficava
aflita, o coração aos pulos, magoada comigo mesma, me sentindo uma
tonta por ter sido desleixada com o preparo. Mas suas queixas não
passavam disso, não alterava o tom da voz, não falava alto. Falava
como se olhasse para o cultivo e constatasse alguma coisa que
enfraquecia a plantação.
Enquanto o tempo passava, Tobias parecia
não sentir satisfação pelo que eu fazia. Se queixava de algum
objeto que procurava e não encontrava. Dizia que eu não poderia
mexer em tudo, que às vezes algo poderia parecer estar fora do
lugar, mas estava no lugar certo, porque ele havia escolhido assim.
Concordava. Assentia com a cabeça, mas evitava olhar seus olhos.
Nessas horas, crescia a vontade de deixar tudo para trás, de voltar
para minha casa, mas o que os vizinhos não diriam? Continuávamos a
frequentar a casa de meu pai nas noites de jarê, todos agora sabiam
que eu não era mais “Belonísia de Zeca Chapéu Grande” e que
agora vivia com Tobias, logo, eu era “Belonísia de Tobias”.
Deixava aquela mágoa morrer no peito, mormente quando ele levantava
a roupa antes de dormir para entrar em mim. Ele dormia, roncava, não
reclamava da mulher deitada, então ficava quieta por dentro, como se
estivesse tudo bem.
Me levantava logo quando o via se mexer
na cama, antes de o sol levantar. Mas era só acordar que vinha mais
queixa: ou o café estava ralo como xixi de anjo, ou estava forte,
uma borra de amargo. Procurava enxada, procurava foice, coisas que eu
nem havia mexido. E se ele mesmo colocasse as coisas num lugar
diferente, só por não lembrar, perguntava “mulher, onde está
isso?”, “onde está aquilo?”, e sentia aflição, parava o que
estava fazendo para ajudar a procurar. Se eu encontrasse, era como se
ele tivesse feito, nem dizia palavra para agradecer. A coisa ficou
tão ruim que eu me antecipava, nem esperava ele pedir, já dava tudo
em suas mãos: cinto, sapato, chapéu, gibão, facão, só para não
o ouvir chamando “mulher”. Me sentia uma coisa comprada, que
diabo esse homem tem que me chamar de mulher, minha cabeça agitada
gritava. Na casa de meu pai, quando íamos a cada quinze dias, ou nas
visitas de minha mãe e Domingas, me chamava por meu nome e eu
ignorava, não levantava nem a cabeça para concordar. Senti minha
mãe um pouco cismada com minhas feições, com os desvios de meus
olhos, com as coisas que minha presença queria reclamar, mas eu
disfarçava, tentava nada expressar. O que mais me inquietava era que
aquele não era meu jeito. Arisca, parei de ir para a escola mesmo
sabendo qual a vontade de meu pai. Mesmo admitindo que aquilo fosse
uma pequena frustração para ele, que labutou para que Água Negra
tivesse uma escola para os filhos dos trabalhadores, mas enfrentando
os sentimentos enviesados dos donos que só não foram contra a ideia
porque o prefeito resolveu dar o nome do senhor pai deles à
construção. Para eles era mais uma benfeitoria, não uma escola que
daria estudo aos filhos da gente da fazenda. Os rapazes não se
aproximavam de mim, ou porque me achavam feia, ou porque não
poderiam conversar comigo, principalmente sem a interseção de
Bibiana, ou porque me viam como um desafio, alguém que desafiava à
força o que achavam ser privilégio dos homens. Era assim que me
sentia. Mas ali, na casa do homem com quem vivia, nos limites daquele
casebre de paredes que ruíam, era uma intrusa. Não me sentia à
vontade para reagir, nem que fosse de forma serena, sem rompantes de
violência nos gestos.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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