quarta-feira, 30 de junho de 2021

Torto Arado / 6

Quando Tobias retornou o sol já estava manso e começava a baixar no horizonte. Estava fraca de fome, enganei o estômago com os araçás bicados pelos pássaros e caídos no chão. Encontrei a casa de Maria Cabocla e foi de lá que trouxe a chama. Ela não se surpreendeu ao me ver, já nos conhecíamos de vista nas brincadeiras de jarê. Maria disse que não precisava de lenha. Depois percebeu que eu não respondia e estava parada diante dela como se aguardasse algo. Aí perguntou se era eu quem precisava de lenha. Por último, entendeu que queria fogo e me deu uma das achas que queimavam em seu fogão e que estavam com a ponta em brasa.
De imediato, Tobias abriu um sorriso quando entrou na casa. Temi por um momento que reclamasse por ter mexido em suas coisas, por ter tentado arrumar a bagunça, ainda que não tivesse conseguido fazer tudo naquelas horas que permaneci sozinha. Mas a diferença era clara. Ele olhava os cantos, a cama arrumada, o rasgo no colchão de palha de milho costurado – com linha e agulha que trouxe em minha trouxa –, a mesa limpa, as moscas que voavam mais distantes, a comida que fumegava no fogão. Não agradeceu, era um homem, por que deveria agradecer, foi o que se passou em minha cabeça, mas conseguia ver em seus olhos a satisfação de quem tinha feito um excelente negócio ao trazer uma mulher para sua tapera. Fiz um prato farto para ele, postei-me de pé ao seu lado, esperei que comesse, queria ver em seu rosto o deleite por provar meu tempero. Comeu ávido, com as mãos, despejava largas porções de farinha de mandioca em seu prato, até esvaziá-lo. Joguei as espinhas no mato. Nem esperei que pedisse por mais e repus o feijão e o peixe. Esvaziou com o mesmo entusiasmo do primeiro. Deixei que se afastasse para o banho na lata cheia que tinha ido buscar no rio, ao terminar a minha tentativa de arrumar a casa. Estava exausta quando entrei para me banhar no Santo Antônio.
Quando a noite caiu, acendi o candeeiro com o querosene que havia achado misturado ao lixo. Coloquei-me por perto da luz, sentada para costurar um dos dois lençóis puídos e com grandes rasgos que havia lavado pela manhã. Estava tomada pela agonia e tentava me concentrar na agulha. Tobias me cercou, bebia a cachaça que havia deixado em cima da mesa. Passou a falar do dia, das reses, de Sutério, dos trabalhos na fazenda. Eu parava por uns minutos para olhar um pouco para seu rosto, para que não pensasse que era desfeita minha costurar àquela hora. Para que não desconfiasse que temia o que estava por acontecer a nós dois, na mesma cama em que havia batido com o cabo da vassoura para levantar o pó e que havia costurado. Mas bastava que encontrasse seus olhos para de imediato desviar para a agulha que rompia a trama do tecido entrando de um lado a outro. E com o coração aos pulos dizia a mim mesma “a cada hora, sua agonia”.
Depois que ele me deitou na cama, beijou meu pescoço e levantou minha roupa, não senti nada que justificasse meu temor. Era como cozinhar ou varrer o chão, ou seja, mais um trabalho. Só que esse eu ainda não tinha feito, desconhecia, mas agora sabia que, como mulher que vivia junto a um homem, tinha que fazer. Enquanto ele entrava e saía de mim num vai-e-vem que me fez recordar os bichos do quintal, senti um desconforto no meu ventre, aquele mesmo que me invadiu pela manhã com o trotar do cavalo. Virei minha cabeça para o lado da janela. Tentei olhar pelas frestas a luz da lua que tinha despontado no céu mais cedo. Senti algo se desprender de seu corpo para meu interior. Ele se levantou e foi se lavar com o resto de água. Abaixei minha roupa e fiquei de costas com os olhos no teto de palha procurando filetes de luz. Procurando alguma estrela perdida, que se apresentasse como uma velha conhecida, para dizer que não estava sozinha naquele quarto.
No dia seguinte, logo depois que Tobias saiu para a lida, minha mãe apareceu trazendo Domingas. Tinha um farnel de comida: um pouco de carne seca, mel, ovos e feijão verde debulhado. Queria ver como eu estava, saiu cedo de casa, vieram caminhando aproveitando enquanto o sol ainda não estava a pino. Senti certo alívio de ver as duas. Salu tinha a apreensão nos olhos. Se não fosse a vergonha, teria me perguntado se me fiz mulher direito durante a noite, se ele tinha sido respeitoso comigo. Se espantaram com a quantidade de entulho que havia separado. Eu estava agitada, minhas mãos cortavam o ar, Domingas tentava acompanhar meu raciocínio e ria das minhas tarefas de nova dona de casa. Passamos horas felizes naquela manhã, mas senti um aperto no peito ao vê-las se afastarem tomando o rumo para casa.
Tobias retornava ao fim da tarde e a primeira coisa que fazia era dar uma talagada na garrafa de cachaça que ficava em cima da mesa. Depois tomava banho ou ia direto se sentar à mesa para a refeição. Eu parava o que estivesse fazendo para servir. No começo, parecia apreciar minha comida, sempre repetia. Depois passou a reclamar que tinha muito ou pouco sal. Que o peixe estava cru, e me mostrava pedaços em que eu não conseguia enxergar a falta de cozimento, ou outros que se esbagaçavam com as espinhas, dizendo que tinham cozido demais. Nessas horas eu ficava aflita, o coração aos pulos, magoada comigo mesma, me sentindo uma tonta por ter sido desleixada com o preparo. Mas suas queixas não passavam disso, não alterava o tom da voz, não falava alto. Falava como se olhasse para o cultivo e constatasse alguma coisa que enfraquecia a plantação.
Enquanto o tempo passava, Tobias parecia não sentir satisfação pelo que eu fazia. Se queixava de algum objeto que procurava e não encontrava. Dizia que eu não poderia mexer em tudo, que às vezes algo poderia parecer estar fora do lugar, mas estava no lugar certo, porque ele havia escolhido assim. Concordava. Assentia com a cabeça, mas evitava olhar seus olhos. Nessas horas, crescia a vontade de deixar tudo para trás, de voltar para minha casa, mas o que os vizinhos não diriam? Continuávamos a frequentar a casa de meu pai nas noites de jarê, todos agora sabiam que eu não era mais “Belonísia de Zeca Chapéu Grande” e que agora vivia com Tobias, logo, eu era “Belonísia de Tobias”. Deixava aquela mágoa morrer no peito, mormente quando ele levantava a roupa antes de dormir para entrar em mim. Ele dormia, roncava, não reclamava da mulher deitada, então ficava quieta por dentro, como se estivesse tudo bem.
Me levantava logo quando o via se mexer na cama, antes de o sol levantar. Mas era só acordar que vinha mais queixa: ou o café estava ralo como xixi de anjo, ou estava forte, uma borra de amargo. Procurava enxada, procurava foice, coisas que eu nem havia mexido. E se ele mesmo colocasse as coisas num lugar diferente, só por não lembrar, perguntava “mulher, onde está isso?”, “onde está aquilo?”, e sentia aflição, parava o que estava fazendo para ajudar a procurar. Se eu encontrasse, era como se ele tivesse feito, nem dizia palavra para agradecer. A coisa ficou tão ruim que eu me antecipava, nem esperava ele pedir, já dava tudo em suas mãos: cinto, sapato, chapéu, gibão, facão, só para não o ouvir chamando “mulher”. Me sentia uma coisa comprada, que diabo esse homem tem que me chamar de mulher, minha cabeça agitada gritava. Na casa de meu pai, quando íamos a cada quinze dias, ou nas visitas de minha mãe e Domingas, me chamava por meu nome e eu ignorava, não levantava nem a cabeça para concordar. Senti minha mãe um pouco cismada com minhas feições, com os desvios de meus olhos, com as coisas que minha presença queria reclamar, mas eu disfarçava, tentava nada expressar. O que mais me inquietava era que aquele não era meu jeito. Arisca, parei de ir para a escola mesmo sabendo qual a vontade de meu pai. Mesmo admitindo que aquilo fosse uma pequena frustração para ele, que labutou para que Água Negra tivesse uma escola para os filhos dos trabalhadores, mas enfrentando os sentimentos enviesados dos donos que só não foram contra a ideia porque o prefeito resolveu dar o nome do senhor pai deles à construção. Para eles era mais uma benfeitoria, não uma escola que daria estudo aos filhos da gente da fazenda. Os rapazes não se aproximavam de mim, ou porque me achavam feia, ou porque não poderiam conversar comigo, principalmente sem a interseção de Bibiana, ou porque me viam como um desafio, alguém que desafiava à força o que achavam ser privilégio dos homens. Era assim que me sentia. Mas ali, na casa do homem com quem vivia, nos limites daquele casebre de paredes que ruíam, era uma intrusa. Não me sentia à vontade para reagir, nem que fosse de forma serena, sem rompantes de violência nos gestos.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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