quinta-feira, 1 de abril de 2021

Torto Arado / 11

Todos temeram, por algum tempo, que Crispina tivesse uma recaída do seu acesso de loucura, que desaparecesse como no passado, ou mesmo que precisasse ser recolhida à nossa casa para tratar novamente os males de sua alma. Chegavam notícias de que ela havia mergulhado num estado de melancolia preocupante, sem comer ou cuidar da própria higiene. Isidoro zelava por ela, sacrificando em parte seu trabalho na fazenda, expressando preocupação com a tristeza da mulher. Havia o peso da irmã instalada ainda na casa do pai, no outro lado do terreiro, com seu sobrinho crescendo saudável, sobrinho este que talvez fosse filho de seu companheiro.
As coisas não se resolveram de forma fácil, mas o tempo cuidou para que as emoções esmorecessem. Soubemos que, apesar da indiferença que Crispina havia demonstrado durante o difícil trabalho de parto de Crispiniana, a gêmea não hesitou em procurar pela irmã que, mergulhada em sua melancolia, foi incapaz de reagir e se deixou cuidar como se fosse a sua mãe ausente quem fazia aquela tarefa. No princípio, Crispiniana evitou levar o pequeno consigo, temendo sua reação, que pudesse considerar a presença da criança uma afronta ao seu sentimento de perda. Ainda, porque temia que pudesse Crispina vislumbrar algum traço de Isidoro em seu rosto.
Mas a própria criança, com seus gestos inocentes de choro ou satisfação, se encarregou de despertar um brilho na palidez das atitudes da tia. E como as coisas que não podemos explicar ou entender, aconteceu que o leite de Crispiniana secou. Nunca saberemos se foi uma ação deliberada da mãe, ou um dos eventos místicos tão comuns na vida do povo de Água Negra. A irmã que estava mergulhada na melancolia pela perda do filho, mas atenta ao desconforto revelado no constante berreiro do sobrinho, o abrigou em seu seio sem que ninguém precisasse pedir por isso. Talvez de forma instintiva tenha deixado a criança por si só perseguir seu leite que, mesmo passados tantos dias da chegada do filho natimorto, ainda minava feito uma fonte de água, como as que surgem nas serras que circundam a Chapada Velha. Era o gesto que faltava para unir as gêmeas, por um breve tempo, até as próximas disputas e brigas, num movimento de afeto e rancor que faria parte de seus dias até o fim de suas vidas.
Vi o menino dando seus primeiros passos e depois correndo para o seio da tia, em plena brincadeira de jarê, numa das muitas celebrações da liturgia em nossa casa. A última vez que o vi mamar no seio de Crispina, na conversa tímida que tinham diante da audiência, o menino já se aproximava dos dois anos. Era forte, ativo, parecia muito com as duas irmãs e com o compadre Saturnino, nada guardando em seus traços da possível paternidade de Isidoro.
Foi na noite de Santa Bárbara, em dezembro, e meu pai, apesar de suas obrigações nas brincadeiras do jarê, havia acordado mal humorado, com respostas lacônicas às perguntas que lhe faziam. Só os mais próximos, como nós, sabíamos o porquê do desconforto visível em seus gestos. No fim da tarde, dona Tonha trouxe, numa caixa antiga, adornos de encantada que meu pai vestiria à noite, depois da ladainha, e à medida que os espíritos chegassem e lhe tomassem o corpo para se fazerem presentes. Na caixa estavam guardadas as roupas de Santa Bárbara, Iansã, a dona da noite, lavadas e passadas desde a última vez em que Zeca a havia vestido. A repulsa pelas vestes era tanta que a roupa não era guardada no quarto dos santos como as demais, mas na casa de Tonha, ela mesma cavalo para a encantada nas noites de jarê.
Zeca Chapéu Grande se envergonhava de ter que deixar as calças que honravam a sua posição de liderança na fazenda, como pai espiritual, e vestir saias, emprestando seu corpo a uma mulher. Fazia porque era a sua obrigação, compromisso que havia assumido quando se curou da loucura e se fez no santo na casa de João do Lajedo, em Andaraí. Mas se envergonhava, porque a audiência era formada por seus compadres e vizinhos, que muitas vezes conduzia nos trabalhos de mutirão para a fazenda.
Nessa noite, fiquei ao lado das filhas de santo que o ajudavam a se trocar durante a celebração. Os tocadores aqueceram seus tambores na fogueira acesa no terreiro. A primeira a chegar, após a ladainha e a saraivada de fogos, foi justamente a dona da festa, Santa Bárbara; a caixa trazida por dona Tonha continha a saia vermelha, o adé e a espada de Iansã, todos os adornos que a santa vestiria. O quarto dos santos, onde rezavam a ladainha, tinha velas acesas e uma profusão de cores das imagens e bonecas. Havia imagens de gesso e madeira de diferentes tamanhos e estados de conservação. S. Sebastião, Cristo Crucificado, o Bom Jesus, S. Lázaro, S. Roque, S. Francisco, Padre Cícero. Havia pequenos quadros, uns de cores vivas, outros desbotados, de S. Cosme e S. Damião, Nossa Senhora Aparecida, Santo Antônio. Havia fotografias de meus pais, da velha Donana, outras tantas, pequenas, de devotos. Havia flores de papel, algumas mais novas, outras pálidas. Sempre-vivas, que colhíamos na estrada ou nas cercanias, entre as rochas.
Fazia calor. Os presentes suavam e enxugavam o suor com as costas ou a palma das mãos, sem deixar os lábios vacilarem na prece. Havia muita gente e o quarto era tão pequeno que a maioria acompanhava da sala, principalmente as mulheres e os homens mais velhos. Os mais jovens e as crianças ficavam alheios às rezas e conversavam em tom baixo; as crianças brincavam e, quando saíam de controle, uma das mulheres se virava para reclamar e pedir silêncio, com os dedos em riste e olhos arregalados.
Havia beleza nos cantos que antecediam a aparição da encantada, e muito mais encanto quando meu pai deixava o quarto dos santos para dançar ao som dos atabaques, no meio da sala. Era um homem magro, mais baixo que minha mãe, e com um tom de pele mais claro que o nosso. Não era jovem e carregava no rosto os traços de sua idade. Sulcos profundos, vales na sua pele erodida pelo sol e o vento, que ainda enfrentava todos os dias para plantar e ter direito à morada de sua família na fazenda. Àquela época, Zeca Chapéu Grande já parecia um ancião, guia do povo de Água Negra e das cercanias, referência para todos os tipos de assuntos, desde divergência de trabalho a problemas de saúde.
Dali, do quarto quente dos santos que rescendia a suor e alfazema, Zeca, que agora abrigava Santa Bárbara, vestia a saia vermelha e branca, engomada com todo zelo por dona Tonha, e com o rosto encoberto sob o adé lustroso, ornado de contas vermelhas que recobriam a face. Saiu empunhando a espada de madeira feita por ele mesmo. A espada, pequena, cortava o ar com seus movimentos ágeis. “Ê, Santa Bárbara, virgem dos cabelos louros, ela vem descendo com sua espada de ouro”, a audiência batia palmas e cantava em coro, seguindo o tocador de atabaque. Enquanto os homens aceleravam o toque, Santa Bárbara se agitava em seus passos e giros. Duas mulheres arriaram no chão, com os olhos semicerrados e movimentos que anunciavam a chegada de mais Santas Bárbaras. Foram conduzidas para o quarto por minha mãe e dona Tonha para que pudessem colocar suas vestes também.
Severo, nas últimas brincadeiras de jarê, havia se postado mais próximo aos tocadores. Atento aos toques, já arriscava bater sozinho no couro aquecido, tentando reproduzir o ritmo. Estava maior e mais forte. Tinha um sorriso luminoso, a pele mais negra pela faina debaixo do sol. O corpo irrompendo das roupas, que estavam pequenas. Os olhos de Belonísia, assim como os meus – sei que ela também me notava –, perseguiam com atenção seus gestos. Tio Servó também assumia, por um breve tempo, um dos atabaques, sempre no começo da festa, ou quando um encantado de sua estima, como Tupinambá, vinha girar na sala entre os presentes. Muitas vezes, Sutério vinha participar da audiência e também ensaiava tocar o atabaque nos intervalos entre um giro e outro.
Nessa noite, em particular, estava presente o prefeito. Havia cinco anos, meu pai tinha atendido um de seus filhos. Vieram buscá-lo de carro, um Gordini vermelho, coisa nunca vista em Água Negra. Até então só conhecíamos a Ford Rural da fazenda e os carros que vimos na estrada quando fomos para o hospital por causa do acidente. Desde então, aparecia na festa de Santa Bárbara. Da primeira vez, meu pai não aceitou seu pagamento, mas pediu que trouxesse um professor da prefeitura para que desse aula às crianças da fazenda. Contava que viu um tanto de constrangimento no rosto de Ernesto, que, sem escapatória, fez a promessa. A gratidão por meu pai e pela encantada era grande, por isso teve que cumprir o que prometeu. Havia também o medo que o encantamento que curou o filho se desfizesse. Então, meses mais tarde, viria uma professora no carro da prefeitura, três dias na semana, para dar três horas de aula na casa de dona Firmina. Firmina vivia sozinha e dispunha de um pequeno galpão com tábuas que, apoiadas em duas latas cheias de barro, se tornavam um banco para sete ou oito crianças. Para reforçar o que aprendíamos com professora Marlene, tínhamos o apoio de minha mãe. Dizia que só não poderia ensinar matemática, porque não sabia; “tenho a letra, mas não tenho o número”.
Inclusive, no princípio, o prefeito sugeriu uma solução menos trabalhosa e, sabendo que minha mãe era alfabetizada, quis fazê-la professora. Minha mãe, consciente de suas limitações, recusou. Reforçou em sua fala a expressão “tenho a letra, mas não tenho o número”, e que queria muito que seus filhos de sangue e de pegação tivessem estudo e pudessem ter uma vida melhor do que a que tinha. Essa era a razão de todo o esforço que meu pai fez para que tivéssemos um professor e, percebendo que não era o suficiente, uma escola. Meu pai não era alfabetizado, assinava com o dedo de cortes e calos, de colher frutos e espinhos da mata. Escondia as mãos com a tinta escura quando precisava colocar suas digitais em algum documento. De tudo que vi meu pai bem querer na vida, talvez fosse a escrita e leitura dos filhos o que perseguiu com mais afinco. Quem acompanhasse sua vida de lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê, acharia que eram os bens maiores de sua existência. Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam ao ensino, saberiam que esse era o bem que mais queria poder nos legar.
E não foi com espanto que vi naquela noite, antes de todos os outros encantados chegaram e se abrigarem no seu corpo, Santa Bárbara girar, gritar e parar com sua espada apontada para o prefeito, a quem fez honras, como se cumprimentasse um monarca, mas também como se se dirigisse a um súdito, para lhe pedir, na frente da audiência, que cumprisse a promessa feita no passado – e que não me recordo de sabermos – de construir uma escola para os filhos dos trabalhadores. O prefeito olhou desconcertado, esboçando um sorriso sem graça, quando se viu diante do olhar das quarenta famílias que moravam em Água Negra. Quase compassivo, recordando das graças e temendo a má sorte que teria, dependendo do esforço empreendido para realizar a ordem dada pela encantada, aquiesceu.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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