quarta-feira, 31 de março de 2021

A excitação de Zorba

Estava pensando na linhita? — perguntou Zorba com alguma hesitação.
Em que queria você que eu pensasse? — respondi-lhe rindo. — amanhã começamos o trabalho. Era preciso fazer uns cálculos.
Zorba olhou-me com o canto do olho. Vi que ele ainda uma vez me pesava, sem saber se devia acreditar ou não.
E qual o resultado dos cálculos? — perguntou de novo, aprofundando-se no assunto com prudência.
Que dentro de três meses devemos estar extraindo dez toneladas de linhita por dia para cobrir as despesas.
Zorba olhou-me ainda, mas desta vez com inquietação. Logo depois:
E por que Diabos você foi para a praia para fazer cálculos? — Desculpe-me, patrão, lhe pergunto isso, mas é que não entendo. Eu, quando vou lidar com cifras, a vontade que tenho é de abrir um buraco no cão e me enfiar nele, para não ver nada em volta de mim. Se levanto os olhos e vejo o mar, ou uma árvore, ou uma mulher, até uma velha, lá se vão os cálculos e as porcarias das cifras desaparecendo a galope. Até parecem que nascem asas neles!...
A culpa é sua Zorba! — disse para implicar. — você não tem é força para se concentrar.
Não sei não, patrão. Isso depende. Há casos em que nem o sábio Salomão... Veja, um dia passei numa aldeia. Um velho de noventa anos estava plantando uma amendoeira. “Ei, avozinho, disse eu. Estás plantando uma amendoeira?” e ele, curvado com estava, vira-se e me diz: “meu filho, eu faço as coisas como quem não vai morrer nunca.” E eu lhe respondo: “Pois eu as faço com se estivesse para morrer a cada instante.” Quem de nós tinha razão, patrão?
É nessa que eu te pego — disse.
Calei-me duas trilhas igualmente íngremes e ousadas podem levar ao mesmo cume. Agir como se a morte não existisse e agir pensando na morte a cada instante é talvez a mesma coisa. Mas quando Zorba me perguntou eu não sabia.
E então? — perguntou Zorba com malícia. — não se importe, patrão, não tem saída mesmo. Falemos de outra coisa. Eu, neste momento, penso em almoçar, na galinha, no arroz com canela, e meu cérebro solta fumaça como o arroz. Amanhã, a linhita estará diante de nós; e o nosso pensamento será linhita. Nada de mais medidas, certo?
Entramos na aldeia. As mulheres estava sentadas às portas das casas e tagarelavam; os velhos, apoiados em seus bastões, estavam quietos. Sob uma romãzeira carregada de frutos uma velha encarquilhada catava algumas coisas do neto. Diante do café estava um velho espigado, o rosto severo e concentrado, nariz aquilino, ar de grão-senhor; era Mavrandoni, o notável da aldeia, que nos havia alugado a mina de linhita. Havia passado na véspera na casa de Madame Hortência para nos levar para sua casa.
É uma vergonha para nós que vocês fiquem no albergue, como se não houvessem pessoas para recebê-los.
Era austero, e media suas palavras. Havíamos recusado. Ele ressentiu-se, mas não insistiu.
Fiz meu dever — declarou ao sair. — vocês são livres.
Logo depois enviou-nos dois queijos, uma cesta de romãs, um prato com uvas secas e figos e uma jarra de raki.
Saudações da parte do capitão Mavrandoni! — disse o criado, descarregando o burrico — pouca coisa, mandou dizer, mas de coração.
Cumprimentamos o notável abundantemente, com palavras cordiais.
Longa vida a vocês — respondeu ele, colocando sua mão ao peito. E calou-se.
Ele não gosta muito de falar — murmurou Zorba: — é um homem fechado.
Orgulhoso — disse eu. — gosto dele.
Estávamos chegando. As narinas de Zorba palpitavam alegremente. Madame Hortência, assim que nos viu à entrada, deu um grito e voltou à cozinha.
Zorba preparou a mesa no pátio, sob a latada aberta e já sem folhas. Cortou grandes pedaços de pão, trouxe o vinho, botou os pratos e talheres. Voltou-se, olhou-me maliciosamente e apontou-me a mesa: havia posto lugar para três!
Morou, patrão? — soprou-me.
Morei — respondi. — morei sim, velho debochado.
São as galinhas velhas que fazem as boas canjas — disse ele passando a língua nos lábios. — disso eu entendo.
Movimentava-se, ágil, e seus olhos dardejavam enquanto cantarolava velhas cantigas de amor.
Isso é que é vida, patrão. Boa vida. Veja, nesse momento estou me comportando como se fosse morrer agora. E apresso-me a comer a galinha antes que me quebrem o pito.
À mesa! — ordenou Madame Hortência.
Ergueu a terrina e veio colocá-la diante de nós. Mas ficou de boca aberta: havia visto os três lugares. Vermelha de prazer, olhou para Zorba com seus pequenos olhos ácidos, azuis, e tremelicou as pálpebras.
Essa tem fogo — segredou-me Zorba.
Depois, com extrema polidez, voltou-se para ela:
Bela ninfa das ondas — disse-lhe, — somos náufragos e o mar jogou-nos em teu reino. Digna-te a repartir conosco nosso almoço, minha sereia!
A velha cantora abriu os braços e tornou a fechá-los, como se quisesse envolver nós dois num abraço; balançou-se graciosamente, passou por Zorba, por mim, e correu cacarejando para seu quarto.
Logo depois voltou, trepidante, rebolando-se com seu melhor vestido: um velho vestido de veludo verde, gasto, enfeitado de cordões de cetim amarelo. O corpete estava hospitaleiramente aberto, e no decote pendera uma rosa de pano, puída. Na mão trazia a gaiola do papagaio, que pendurou numa trave da latada.
Fizemos com que ela se sentasse ao meio, Zorba à sua direita e eu à esquerda.
Atiramo-nos sobre o almoço. Um longo momento passou sem que nenhum de nós dissesse palavra. Em cada um a fera alimentava-se e embriagava-se com o vinho; a comida se transformava depressa em sangue, o mundo ficava mais belo, a mulher a nosso lado a cada instante parecia mais jovem, e suas rugas se apagavam. O papagaio suspenso à nossa frente, roupa verde e colete amarelo, debruçava-se para nos olhar e parecia hora um homenzinho enfeitiçado ora a alma da velha cantora, vestida de verde e amarelo. E sobre nossas cabeças a latada desfolhada se cobria de repente com grandes cachos de uvas negras.
Zorba revirou os olhos e abriu os braços como se quisesse abarcar com eles todo o mundo.
O que se passa, patrão? — disse ele, estupefato, — bebe-se um copo de vinho e o mundo perde o rumo. E, assim mesmo, que coisa é a vida, patrão! Afinal, isso que pende sobre sua cabeça são uvas? São anjos? Não consigo distinguir. Ou então não é nada, e nada existe; nem galinha, nem sereia, nem Creta? Fale, patrão, fale ou fico louco!
Zorba começava a ficar excitado. Tinha terminado a galinha e olhava gulosamente para Madame Hortência. Seus olhos se jogavam sobre ela, subiam e desciam, esgueiravam-se para dentro de seu colo intumescido e apalpavam-na com as mãos. Os pequeninos olhos de nossa boa senhora brilhavam também, pois gostava de vinho, e havia tomado Deus quem sabe quantos copos. E o turbulento demônio do vinho a havia levado de volta aos bons tempos. Readquirida a ternura, alegre e expansiva, ela se levantou, trancou a porta de fora para que os aldeões não a vissem — “os Bárbaros” como ela os chamava — acendeu um cigarro e, com seu narizinho arrebitado à francesa, pôs-se a soltar espirais de fumaça.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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