quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Uma histórias dos diabos (trecho)

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Recordava tudo isso e não parava de refletir. É sabido que, por vezes, nos passam pela cabeça séries completas de raciocínios no espaço de um breve instante, na forma de um qualquer tipo de sensações, sem tradução para a linguagem humana corrente e, muito menos, para a língua literária. Tentaremos no entanto traduzir todas essas sensações do nosso herói e apresentar ao leitor nem que seja apenas a sua essência, isto é, o que nelas foi, por assim dizer, o mais importante e verosímil. É que muitas das nossas sensações, traduzidas para a linguagem normal, podem parecer absolutamente inverosímeis. É por isso que nunca surgem à luz do dia, embora cada qual as tenha. As sensações e os pensamentos de Ivan Iliitch eram, evidentemente, um pouco incoerentes. Bom, o leitor já sabe porquê.
Pois é! — passou-lhe pela cabeça. — Falamos, falamos, mas, na hora da verdade, nada. Por exemplo, este Pseldonímov: chegou a casa, depois da cerimónia do casamento, emocionado, cheio de esperança, à espera do momento delicioso... É um dos dias mais venturosos da sua vida... Agora está a receber os convidados, a fazer a festa... modesto, pobre, mas alegre, feliz, sincero... Então se soubesse que eu, neste preciso momento, eu, o seu chefe, estou aqui, mesmo ao lado de sua casa, a ouvir a sua música! Na verdade, o que sentiria ele? Mais: o que sentiria ele se eu, agora mesmo, entrasse de repente em casa dele? Humm... É claro que a princípio se assustaria, ficaria paralisado de embaraço. Eu ia ser um estorvo, talvez estragasse tudo... Sim, mas isso era se entrasse ali um outro general qualquer, mas não eu...
Sim, Stepan Nikiforovitch! O senhor não me compreendeu, mas aqui está um exemplo real.
Pois. Não paramos de gritar sobre o humanismo, mas somos incapazes do heroísmo, da façanha.
Qual heroísmo? Veja bem: nas relações atualmente existentes entre todos os membros da sociedade, se eu entrar, eu, depois da meia-noite, nas bodas do meu subordinado, um registador com dez rublos mensais de ordenado, será uma atrapalhação, um turbilhão de ideias, o último dia de Pompeia, o pânico! Ninguém vai compreender. Stepan Nikiforovitch nem por nada deste mundo compreenderá. Não foi ele quem disse: não vamos aguentar? Pois não, mas isso é para vós, os velhos, gente da paralisia e da estagnação. Porque eu, eu aguento! Transformo o último dia de Pompeia no mais doce dos dias para o meu subordinado, transformo um gesto louco num ato normal, patriarcal, elevado e moral. Como? Pois faça o favor de ouvir...
Bom... eu, digamos, entro; eles ficam espantados, param de dançar, olham-me como bichos do buraco, recuam. É aí, então, que eu me mostro tal como sou: vou direito a Pseldonímov e, com o mais carinhoso dos sorrisos, com as palavras mais simples, com simplíssimas palavras, digo: “Tal e tal, acabo de visitar sua excelência Stepan Nikiforovitch. Suponho que sabes que é perto daqui, na vizinhança...” E conto logo, de uma forma cômica, a minha desventura com Trífon. Depois do Trífon, passo a contar como me meti a pé... “Foi então que ouvi a música, perguntei ao polícia e fiquei a saber, meu amigo, que eram as tuas bodas. “Ora, vou visitar o meu subordinado, pensei, vou ver como é que se divertem os meus funcionários e... como são os casamentos deles. Não me vais expulsar, suponho eu!” Expulsar! Que palavra para um subordinado! Qual expulsar, qual quê! Acho é que vai ficar doido, todo afobado para me chegar uma cadeira, a tremer de exaltação, enfim, no primeiro momento vai ficar de cabeça perdida!...
O que pode haver de mais simples, de mais elegante do que este procedimento? E porque é que eu entraria lá? Isso já é outro problema. Trata-se, por assim dizer, do lado moral da questão. É esse o cerne da questão!
Humm... Onde é que eu ia? Ah, pois!
Vão com certeza sentar-me ao lado do convidado mais importante, um qualquer conselheiro titular ou parente, um capitão na reserva de nariz vermelho... Gógol descrevia lindamente esses originais. Bom, então apresento-me à noiva, é claro, apresento-lhe os meus cumprimentos, animo os convidados. Peço que não se acanhem, que se divirtam, que continuem a dançar, digo umas piadas, rio, brinco, enfim, sou amável e simpático. Aliás, sou sempre amável e simpático quando estou satisfeito comigo próprio... Humm... Na verdade, parece que ainda estou... enfim, um tanto embriagado, mas só...
... Evidentemente, eu, como gentleman, ponho-me em pé de igualdade com eles e não exijo de modo algum qualquer tratamento de privilégio... Mas, moralmente, moralmente é outra coisa: eles vão compreender e vão dar o devido valor... O meu procedimento ressuscitará neles toda a nobreza... E pronto, fico lá meia hora... Uma hora, vá lá... Saio antes da ceia, evidentemente, mas eles vão azafamar-se a assar coisas, a fritar, depois convidam-me, com muitas vênias, mas eu bebo apenas um copo, dou os parabéns, e recuso-me a cear. Direi: tenho assuntos para tratar. E quando eu pronunciar a palavra “assuntos”, vão fazer todos umas caras de respeito, sisudas. E assim, delicadamente, lembro-lhes que entre mim e eles há uma certa diferença, há sim senhor. Terra e céu. Não é que eu queira impor semelhante ideia, mas é preciso... é uma coisa necessária, até no sentido moral, nada a fazer. Aliás, logo a seguir sorrio, até me rio um pouco, pronto, e toda a gente vai ficar animada... Brinco mais uma vez com a noiva, humm... até pode ser assim: insinuo que volto dentro de nove meses na qualidade de padrinho, ih, ih! De certeza que ela vai dar à luz nesse prazo. É que eles reproduzem-se como coelhos. Então todos se riem, a noiva fica muito corada; eu dou-lhe um beijo sentido na fronte, até a abençoo e... pronto, amanhã já o meu feito é conhecido no serviço. Mas amanhã volto a ser rigoroso, exigente, até implacável, mas entretanto já eles sabem como eu sou, já conhecem a minha alma, a minha essência: “Como chefe é muito rigoroso, mas como pessoa é um anjo!” É esta a minha vitória: apanhá-los com uma pequena ação que a vós, meus senhores, nem passaria pela cabeça; torná-los meus: eu sou o pai, eles são os filhos... Ora veja lá Vossa Excelência, Stepan Nikiforovitch, se é capaz de fazer o mesmo...
Será que não sabe, Stepan Nikiforovitch, será que não compreende que o Pseldonímov contará mais tarde aos filhos que nas suas bodas até esteve o general, a beber com ele! Depois os filhos contarão aos seus filhos, e estes aos seus netos, como um caso lendário e sagrado, que um tal dignitário, um homem de Estado (nessa altura serei tudo isso) os honrou, etc., etc. Elevarei moralmente o humilhado, devolvê-lo-ei a si mesmo... É que ele recebe dez rublos mensais de vencimento!... Pois é, e se eu repetir isto cinco ou dez vezes, ou qualquer outra coisa do gênero, adquiro popularidade por todo o lado... Fico gravado em todos os corações, e só o diabo sabe o que virá depois disso, da popularidade...”
Assim, ou quase assim, raciocinava Ivan Iliitch (é que, meus senhores, a gente às vezes diz cada coisa mentalmente, sobretudo num estado um pouco excêntrico!). Todos estes raciocínios relampejaram na sua cabeça no espaço de uns trinta segundos, e seria de prever que, depois de ter envergonhado mentalmente Stepan Nikiforovitch, Ivan Iliitch iria tranquilamente para casa deitar-se. E faria muito bem! Mas, infelizmente, o momento era mesmo excêntrico.
Nem de propósito, neste momento desenharam-se-lhe de súbito na sua imaginação desconcertada as caras convencidas de Stepan Nikiforovitch e Semion Ivánovitch.
Não vamos aguentar! — voltava a dizer Stepan Nikiforovitch, sorrindo com altivez.
Ih, ih, ih! — secundava-o Semion Ivánovitch com o mais abominável dos seus sorrisos.
Vamos lá a ver se não aguentaremos! — disse resolutamente Ivan Iliitch, e até o calor lhe subiu ao rosto. Saiu do passeio e atravessou em passo firme a rua, a caminho da casa do seu subordinado, o registador Pseldonímov.
[…]

Fiodor Dostoiévski, Uma histórias dos diabos

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