sábado, 23 de janeiro de 2021

Apocalipse de Solentiname

          Os ticos são sempre assim, quietinhos mas cheios de surpresas, a gente chega em São José da Costa Rica e aí estão esperando Carmen Naranjo e Samuel Rovinski e Sergio Ramírez (que é da Nicarágua e não tico mas que diferença no fundo se dá no mesmo, que diferença há que eu seja argentino embora por gentileza deveria dizer tino, e os outros nicas ou ticos). Fazia um desses calores e, o que era pior, tudo começava em seguida, entrevista à imprensa com as coisas de sempre, por que não vive em sua pátria, que houve com Blow-Up que era tão diferente de seu conto, você acha que o escritor tem de estar engajado? A essa altura já sei que me farão a última entrevista nas portas do inferno e não tenho dúvida de que farão as mesmas perguntas, e se por acaso for chez São Pedro a coisa não vai mudar, você não acha que lá embaixo escrevia hermético demais para o povo?
Depois o Hotel Europa e essa ducha que coroa as viagens com um longo monólogo de sabão e silêncio. Só que às sete, quando já era hora de caminhar por São José e ver se era simples e igualzinho como me tinham dito, uma mão me puxou pelo paletó e atrás estava Ernesto Cardenal e que abraço, poeta, que bom que estivesse aí depois do encontro em Roma, de tantos encontros sobre o papel ao longo dos anos. Sempre me surpreende, sempre me comove que alguém como Ernesto venha me ver e me procurar, você dirá que ardo de falsa modéstia, mas diga logo, velho, os cães ladram, a caravana passa, serei sempre um aficcionado, alguém que de baixo ama muito a alguns que um dia acontece que também o amam são coisas que estão acima de mim, melhor que passemos a outra linha.
A outra linha era que Ernesto sabia que eu chegava a Costa Rica e olhe só, viera voando de sua ilha porque o passarinho que lhe leva as notícias o informara que os ticos planejavam para mim uma viagem a Solentiname e ele achou irresistível a ideia de vir me buscar, com o que, dois dias depois, Sergio e Óscar e Ernesto e eu abarrotávamos a facilmente abarrotável capacidade de um Piper Aztec, cujo nome será sempre um enigma para mim, mas que voava entre soluços e borborigmos detestáveis enquanto o loiro piloto sintonizava uns calipsos de oposição e parecia completamente indiferente à minha noção de que o asteca nos levava direto à pirâmide do sacrifício. Não foi assim, como se pôde ver, descemos em Los Chiles e daí um jipe igualmente cambaleante nos pôs na fazenda do poeta José Coronel Urteche, que faria bem a muita gente ler e em cuja casa descansamos, falando de tantos outros amigos poetas, de Roque Dalton e Gertrude Stein e de Carlos Martínez Rivas até que Luis Coronel chegou e fomos para a Nicarágua em seu jipe e sua panga de sobressaltadas velocidades. Antes, porém, tiramos fotografias de lembrança com uma dessas máquinas que fazem sair na hora um papelzinho azul que pouco a pouco e maravilhosamente e polaroid vai se enchendo de imagens paulatinas, primeiro ectoplasmas inquietantes e pouco a pouco um nariz, um cabelo crespo, o sorriso de Ernesto com sua barba nazarena, Dona María e Dom José destacando-se com o terraço ao fundo. Todos achavam isso muito normal porque já estavam habituados a servir-se dessa máquina, mas eu não, para mim, ver sair do nada, do quadradinho azul do nada esses rostos e esses sorrisos de despedida me enchia de espanto e lhes disse isso, lembro-me de ter perguntado a Óscar o que aconteceria se alguma vez, depois de uma foto de família, o papelzinho azul do nada começasse a se encher com Napoleão a cavalo, e a gargalhada de Dom José Coronel, que tudo ouvia como sempre, o jipe, vamos logo para o lago.
Chegamos a Solentiname entrada a noite, lá esperavam Teresa e William e um poeta gringo e os outros rapazes da comunidade; fomos dormir quase em seguida, antes, porém, vi as pinturas em um canto, Ernesto falava com sua gente e tirava de uma bolsa as provisões e presentes que trazia de São José, alguém dormia em uma rede e eu vi as pinturas em um canto, comecei a olhá-las. Não me lembro quem foi que me explicou que eram trabalhos dos camponeses da zona, este é do Vicente, este é da Ramona, alguns assinados e outros não, mas todos tão belos, uma vez mais a visão primeira do mundo, o puro olhar de quem descreve o seu arredor como um canto de louvor: vaquinhas anãs em prados de amapola, a choça de açúcar de onde vai saindo gente como formiga, o cavalo de olhos verdes em um fundo de canaviais, o batismo em uma igreja que não acredita na perspectiva e sobe ou cai sobre si mesma, o lago com botezinhos feito sapatos e em último plano um peixe enorme que ri com lábios de cor turquesa. Ernesto, então, veio explicar-me que a venda das pinturas ajudava a levar a vida, pela manhã me mostraria trabalhos em madeira e pedra dos camponeses e também, suas próprias esculturas; sentíamos muito sono mas eu continuei espiando os quadrinhos amontoados em um canto, separando a grande confusão de telas com as vaquinhas e as flores e essa mãe com dois filhos nos joelhos, um de branco e o outro de vermelho, sob um céu tão cheio de estrelas que a única nuvem ficava como que humilhada em um ângulo, apertando-se contra a moldura do quadro, escapando da tela de puro medo.
Era domingo o outro dia e missa das onze, a missa de Solentiname, na qual os camponeses e Ernesto e os amigos de visita comentam juntos trechos do evangelho que nesse dia era o da prisão de Cristo no horto, um tema que a gente de Solentiname tratava como se falasse de si mesma, da ameaça de que lhes sobreviesse, à noite ou em pleno dia, essa vida de permanente intranquilidade das ilhas e da terra firme e de toda Nicarágua e não somente de toda Nicarágua senão de quase toda América Latina, vida rodeada de medo e morte, vida da Guatemala e vida de El Salvador, vida da Argentina e da Bolívia, vida do Chile e de Santo Domingo, vida do Paraguai, vida do Brasil e da Colômbia.
Logo depois tivemos de pensar em voltar e foi então que pensei de novo nos quadros, fui à sala da comunidade e comecei a olhá-los à luz delirante do meio-dia, as cores mais vivas, os acrílicos ou os óleos confrontando-se, eram cavalinhos e girassóis e festas nos campos e simétricos palmeirais. Lembrei-me que tinha um filme colorido na máquina e sai ao terraço com uma braçada de quadros; Sergio que chegava ajudou-me e mantemos de pé na boa luz, e de um em um eu os fui fotografando com cuidado, para que cada quadro ocupasse inteiramente o visor. São assim os acasos: me sobravam tantas fotografias quanto quadros, nenhum deixou de ser fotografado, e quando Ernesto chegou para nos dizer que a panga estava pronta contei-lhe o que tinha feito e ele riu, ladrão de quadros, contrabandista de imagens. Sim, disse-lhe, eu os levo todos, lá os projetarei em minha tela e serão, maiores e mais brilhantes que estes, dane-se.
Voltei a São José, estive em Havana e andei por aí fazendo coisas, de volta à Paris com um cansaço cheio de saudade, Claudine quietinha, esperando-me em Orly, outra vez a vida de relógio no pulso e merci monsieur, bonjour madame, os comitês, os cinemas, o vinho tinto e Claudine, os quartetos de Mozart e Claudine. Entre tanta coisa que as gordas malas tinham cuspido sobre a cama e o tapete, revistas, recortes, lenços e livros de poetas centro-americanos, os tubos de plástico cinzento com os rolos de filme, tanta coisa ao longo dos meses, a sequência da Escola Lenin de Havana, as ruas de Trinidad, os perfis do vulcão Irazú e seu depósito de água fervente e verde, onde Samuel e eu e Sarinha tínhamos imaginado patos assados flutuando entre gases de fumaça de enxofre. Claudine levou os rolos para revelar, uma tarde andando pelo Quartier Latin eu me lembrei e como tinha a nota no bolso os recolhi, eram oito, pensei logo nos quadrinhos de Solentiname e em casa procurei nas caixas e fui olhando o primeiro diapositivo de cada série, me lembrava que antes dos quadrinhos fotografara a missa de Ernesto, umas crianças brincando entre as palmeiras iguaizinhas às pinturas, crianças e palmeiras e vacas sobre um fundo violentamente azul de céu e de lago apenas um pouco mais verde, ou talvez ao contrário, já não sabia direito. Pus no aparelho a caixa das crianças e da missa, sabia que depois começavam as pinturas até o final do rolo.
Anoitecia e eu estava sozinho, Claudine viria ao sair do trabalho para ouvir música e ficar comigo; preparei a tela e um rum com muito gelo, o projetor com seu carregador pronto e seu botão de telecomando; não preciso correr as cortinas, a noite serviçal já estava ali acendendo as lâmpadas e o perfume do rum; era bom pensar que tudo voltaria a acontecer pouco a pouco, depois dos quadrinhos de Solentiname começaria a passar as caixas com as imagens cubanas, mas por que os quadrinhos primeiro, por que a deformação profissional, a arte antes que a vida, mas por que não, disse a outra a esta em seu eterno indesarmável diálogo fraterno e rancoroso, por que não olhar primeiro as pinturas de Solentiname se também são a vida, se tudo é a mesma coisa?
Passaram as imagens da missa, ruins por erros de exposição, as crianças, em compensação, brincavam em plena luz e dentes muito brancos. Apertava sem vontade o botão, teria ficado tanto tempo olhando cada uma daquelas imagens pegajosas de lembranças, pequeno mundo frágil de Solentiname cercado de água e de esbirros assim como estava cercado o rapaz que olhei sem compreender, eu tinha apertado o botão e o rapaz estava ali em um segundo plano claríssimo, uma cara larga e limpa, cheia de incrédula surpresa, enquanto seu corpo se dobrava para a frente, o buraco nítido no meio da testa, o revólver do oficial marcando ainda a trajetória da bala, dos lados, os outros, com as metralhadoras, um fundo confuso de casas e árvores.
Pense-se o que se quiser, isso sempre chega antes de nós mesmo e nos deixa muito para trás; estupidamente me disse que tinha havido engano na ótica, que me deram imagens de outro cliente, mas então a missa, as crianças brincando no campo, e então? Minha mão também não obedecia quando apertou o botão, e foi um salitral interminável ao meio-dia com dois ou três telheiros de chapas enferrujadas, gente amontoada a esquerda olhando os corpos estendidos de costas, os braços abertos contra um céu nu e cinzento; era preciso prestar muita atenção para distinguir no fundo o grupo fardado de costas e se afastando, o jipe que esperava no alto de uma ladeira.
Sei que continuei; para enfrentar isso que resistia a toda prudência a única coisa possível era continuar apertando o botão, olhando a esquina de Corrientes e San Martín e o carro negro com os quatro sujeitos apontando para a calçada onde alguém corria com uma camisa branca e sandálias, duas mulheres querendo se refugiar atrás de um caminhão estacionado, alguém olhando de frente, uma cara de incredulidade horrorizada, levando a mão ao queixo como que para se tocar e se sentir ainda vivo, e de repente o aposento quase às escuras, uma luz suja caindo da alta janela gradeada, a mesa com a moça nua e de costas, o cabelo desabado até o chão, a sombra de costas enfiando nela um cabo entre as pernas abertas, os dois sujeitos de frente conversando, uma gravata azul e um pulôver verde. Nunca soube se continuava apertando ou não o botão, vi uma clareira de selva, uma cabana com teto de palha e árvores em primeiro plano, contra o tronco da mais próxima um rapaz magro olhando para a esquerda onde um grupo confuso, cinco ou seis muito juntos, apontava com fuzis e revólveres; o rapaz de cara larga e uma mecha caindo-lhe na testa morena olhava-os, uma mão levantada, a outra talvez no bolso da calça, era como se estivesse lhes dizendo algo sem pressa, quase displicentemente, e embora a fotografia fosse ruim eu senti e soube e vi que o rapaz era Roque Dalton, e então sim, apertei o botão como se com isso pudesse salvá-lo da infâmia dessa morte e pude ver um carro que voava em pedaços em pleno centro de uma cidade que podia ser Buenos Aires ou São Paulo, continuei apertando e apertando entre rajadas de caras ensanguentadas e pedaços de corpos e correrias de mulheres e crianças por uma ladeira boliviana ou guatemalteca, de súbito a tela se encheu de mercúrio, e de nada e também de Claudine que entrava silenciosa derramando sua sombra na tela antes de se inclinar e me beijar no cabelo e perguntar se eram lindas, se estava contente com as fotografias, se queria mostrar a ela.
Acionei o carregador e voltei a colocá-lo em zero, uma pessoa não sabe como nem por que faz as coisas quando ultrapassou um limite que também desconhece. Sem olhar para ela, porque teria compreendido ou simplesmente tido medo disso que devia ser a minha cara, sem lhe explicar nada porque tudo era um só no da garganta as unhas dos pés, me levantei e devagar sentei-a em minha poltrona e algo devo ter dito, que buscaria uma bebida para ela e que olhasse, que olhasse enquanto ia lhe buscar uma bebida. No banheiro, acho que vomitei, ou só chorei e depois vomitei ou não fiz nada e apenas fiquei sentado na beira da banheira deixando o tempo passar até que pude ir a cozinha e preparar para Claudine sua bebida preferida, enchê-la de gelo e então sentir o silêncio, perceber que Claudine não gritava nem vinha correndo para me interrogar, o silêncio nada mais e, por momentos, o bolero açucarado que se filtrava do apartamento ao lado. Não sei quanto demorei para percorrer o caminho da cozinha à sala, ver a parte traseira da tela bem quando ela chegava ao final da série e a peça ficava tomada pelo reflexo do mercúrio instantâneo e depois a penumbra, Claudine apagando o projetor e soltando-se na poltrona para beber e me sorrir devagarinho, feliz e gata e tão contente.
Como ficaram bonitas aquelas do peixe que ri e da mãe com os dois filhos e as vaquinhas no campo; espere, e aquela outra do batismo na igreja, me diga quem os pintou, não se vê as assinaturas.
Sentado no chão, sem olhar para ela, procurei meu copo e o bebi de um gole. Não lhe diria nada, que lhe podia dizer agora, me lembro, porém, que pensei vagamente em lhe perguntar uma idiotice qualquer, perguntar-lhe se em algum momento não tinha visto uma fotografia de Napoleão a cavalo. Mas não lhe perguntei, claro.

Julio Cortázar, in Alguém que anda por aí

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