segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Uma história muy triste e comprida

            Após comer, João Fôia pagou o que devia e foi atrás do tal de Pedro, conforme sugeriu o dono da venda. João não achou o gaúcho no umbu e deu uma volta pelo terreno. Não era um comércio comum. Da terra, brotava o cheiro de mato; e, das lareiras, sentia o picumã — cheiro de rancho, como dizia seu pai — as panelas fumegantes emanavam odores de casa, de lar, de lugar habitado. Há quanto tempo não sentia aqueles cheiros? Nem sabia. O bolicho do Geraldo tinha um quê de sua casa. Não sabia explicar o motivo.
Por fim, encontrou Pedro que encerrava as galinhas no galinheiro. Aproximou-se lentamente, cumprimentando o estranho:
Buenas! O dono do bolicho disse que vosmecê me ajudaria com o cavalo e com o lugar pra eu pernoitar. Me chamo João Fôia, e qual a sua graça? — disse ele, estendendo a mão.
Pedro Guarany — cumprimentou o outro com um pouco de desconfiança. — Pode sacar os arreios do cavalo e me passar o animal que o levo pra junto do meu.
João fez o que lhe foi pedido, mas acompanhou o outro enquanto indicava-lhe o caminho.
Que lindo lugar este, não é mesmo, Guarany?
É verdade. É um lugar que nos prende, este bolicho.
Chegaram perto da sanga, e o Penacho aproximou-se, farejando o dono. Soltaram o zaino. Os cavalos se cheiraram, relincharam e correram juntos. Pareciam velhos conhecidos.
Muy lindo teu bragado — disse João com a estranha sensação de já ter visto aquele animal.
Gracias, mas o zaino não perde em nada.
Foram para o galpão. Já sem a estranheza da apresentação, conversaram, trocando ideias e descobrindo os pontos em comum na história dos dois.
Cada um aprumou sua cama de arreios perto do fogo, onde chiava a cambona com água quente, e o picumã rescendia, escurecendo a quincha do telhado.
Aceita um amargo? — ofereceu Pedro.
Mas como não? — disse o outro. — Como vinha dizendo, amigo Guarany, que venda buenacha essa do seu Geraldo. Chego a imaginar, ali na cancha, uma carreira... aos gritos de “Sem reserva” e “Já se vieram!”. Qual é o povo mais próximo?
Penso que o povoado de São Sebastião... Mas é muy lejos daqui...
Pois então o ponto é dos bons mesmo — ficou uns instantes, pensativo, com o olhar parado, mas logo voltou ao normal. — Mudando de saco pra mala, me diga... Venho judiado de estrada, precisando me divertir um pouco. Onde tem chinas por essas bandas?
Pedro olhou meio de soslaio para o outro e, em voz baixa, respondeu:
Não hay muitas por acá. Pero, se te agrada, podes descer no costado da sanga, até o próximo passo... Dali já farejas as moças, perto de um mato de seibos... pode falar com a dona Maroca, que ela é uma boa negociante.
Vamos?
Não posso, estou sem nenhum fino, nem pros vícios!
Dá-se um jeito! — provocou Fôia.
Já sabes o caminho — respondeu Pedro, finalizando o assunto.
Mas homem! Não leva tudo muito a sério, que nem petiço em subida! — ponderou, enquanto Pedro apenas olhava e mateava.
João Fôia acomodou-se nos arreios, afrouxou a cinta, puxando a faca de prata para o lado e tirou, finalmente, o chapéu negro da cabeça. O vasto cabelo preto caiu sobre sua testa. Estralou o pescoço num baque. Olhou firmemente para o colega de quarto e, somente então, revelou o olho direito vazado e uma profunda cicatriz em forma de folha naquela parte do rosto.
Pedro Guarany fixou o olhar algum tempo na face castigada do outro. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Estendeu a mão, oferecendo mais um mate.
Foi numa peleia, muitos anos atrás — disse Fôia, como se devesse alguma explicação.
Perdão, não queria ser intrometido. — respondeu Pedro.
Não tem problema. Apenas enxergo muito pouco, o que me atrapalha às vezes. Mas me conta, Guarany, qual a tua história? Todos temos um motivo para andejar sem eira nem beira.
É uma história muy comprida e muy triste.
Todas são, não é mesmo? — disse o outro, rindo.
Pedro Guarany acomodou-se para dormir. Sentia a garganta fisgando. Pouco tempo depois, o silêncio tomou conta do galpão. Escutavam-se apenas os estalos do fogo e o canto dos grilos. Naquela noite, Pedro não pregou o olho pensando em outros tempos. A presença de João Fôia parecia-lhe um aviso, as coisas não mudavam, o passado sempre voltava para exigir seu tributo. Quando acordou, o outro não estava mais lá: João Fôia tinha partido antes do canto dos galos.

R. Tavares, in Andarilhos

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