Após comer, João Fôia pagou o que
devia e foi atrás do tal de Pedro, conforme sugeriu o dono da venda.
João não achou o gaúcho no umbu e deu uma volta pelo terreno. Não
era um comércio comum. Da terra, brotava o cheiro de mato; e, das
lareiras, sentia o picumã — cheiro de rancho, como dizia seu pai —
as panelas fumegantes emanavam odores de casa, de lar, de lugar
habitado. Há quanto tempo não sentia aqueles cheiros? Nem sabia. O
bolicho do Geraldo tinha um quê de sua casa. Não sabia explicar o
motivo.
Por fim, encontrou Pedro que encerrava as
galinhas no galinheiro. Aproximou-se lentamente, cumprimentando o
estranho:
— Buenas! O dono do bolicho disse que
vosmecê me ajudaria com o cavalo e com o lugar pra eu pernoitar. Me
chamo João Fôia, e qual a sua graça? — disse ele, estendendo a
mão.
— Pedro Guarany — cumprimentou o
outro com um pouco de desconfiança. — Pode sacar os arreios do
cavalo e me passar o animal que o levo pra junto do meu.
João fez o que lhe foi pedido, mas
acompanhou o outro enquanto indicava-lhe o caminho.
— Que lindo lugar este, não é mesmo,
Guarany?
— É verdade. É um lugar que nos
prende, este bolicho.
Chegaram perto da sanga, e o Penacho
aproximou-se, farejando o dono. Soltaram o zaino. Os cavalos se
cheiraram, relincharam e correram juntos. Pareciam velhos conhecidos.
— Muy lindo teu bragado —
disse João com a estranha sensação de já ter visto aquele animal.
— Gracias, mas o zaino não
perde em nada.
Foram para o galpão. Já sem a
estranheza da apresentação, conversaram, trocando ideias e
descobrindo os pontos em comum na história dos dois.
Cada um aprumou sua cama de arreios perto
do fogo, onde chiava a cambona com água quente, e o picumã
rescendia, escurecendo a quincha do telhado.
— Aceita um amargo? — ofereceu Pedro.
— Mas como não? — disse o outro. —
Como vinha dizendo, amigo Guarany, que venda buenacha essa do seu
Geraldo. Chego a imaginar, ali na cancha, uma carreira... aos gritos
de “Sem reserva” e “Já se vieram!”. Qual é o povo mais
próximo?
— Penso que o povoado de São
Sebastião... Mas é muy lejos daqui...
— Pois então o ponto é dos bons mesmo
— ficou uns instantes, pensativo, com o olhar parado, mas logo
voltou ao normal. — Mudando de saco pra mala, me diga... Venho
judiado de estrada, precisando me divertir um pouco. Onde tem chinas
por essas bandas?
Pedro olhou meio de soslaio para o outro
e, em voz baixa, respondeu:
— Não hay muitas por acá.
Pero, se te agrada, podes descer no costado da sanga, até o
próximo passo... Dali já farejas as moças, perto de um mato de
seibos... pode falar com a dona Maroca, que ela é uma boa
negociante.
— Vamos?
— Não posso, estou sem nenhum fino,
nem pros vícios!
— Dá-se um jeito! — provocou Fôia.
— Já sabes o caminho — respondeu
Pedro, finalizando o assunto.
— Mas homem! Não leva tudo muito a
sério, que nem petiço em subida! — ponderou, enquanto Pedro
apenas olhava e mateava.
João Fôia acomodou-se nos arreios,
afrouxou a cinta, puxando a faca de prata para o lado e tirou,
finalmente, o chapéu negro da cabeça. O vasto cabelo preto caiu
sobre sua testa. Estralou o pescoço num baque. Olhou firmemente para
o colega de quarto e, somente então, revelou o olho direito vazado e
uma profunda cicatriz em forma de folha naquela parte do rosto.
Pedro Guarany fixou o olhar algum tempo
na face castigada do outro. Sentiu um arrepio percorrer-lhe a
espinha. Estendeu a mão, oferecendo mais um mate.
— Foi numa peleia, muitos anos atrás —
disse Fôia, como se devesse alguma explicação.
— Perdão, não queria ser intrometido.
— respondeu Pedro.
— Não tem problema. Apenas enxergo
muito pouco, o que me atrapalha às vezes. Mas me conta, Guarany,
qual a tua história? Todos temos um motivo para andejar sem eira nem
beira.
— É uma história muy comprida
e muy triste.
— Todas são, não é mesmo? — disse
o outro, rindo.
Pedro Guarany acomodou-se para dormir.
Sentia a garganta fisgando. Pouco tempo depois, o silêncio tomou
conta do galpão. Escutavam-se apenas os estalos do fogo e o canto
dos grilos. Naquela noite, Pedro não pregou o olho pensando em
outros tempos. A presença de João Fôia parecia-lhe um aviso, as
coisas não mudavam, o passado sempre voltava para exigir seu
tributo. Quando acordou, o outro não estava mais lá: João Fôia
tinha partido antes do canto dos galos.
R. Tavares, in Andarilhos
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