Eu aprendi que qualquer coisa pode se
transformar numa história interminável e infinita. A palavra
“tigre” contém o conhecimento de um tigre, de todos os tigres,
dos mamíferos, de sua história no planeta, do capim que eles
comeram, dos insetos que comeram o capim — da ideia de eternidade
contida nos insetos, por oposição à ideia de tempo, propriedade
dos mamíferos. Será que então estaríamos condenados a não falar
sob pena de que, ao dizermos qualquer palavra, estaríamos traindo a
eternidade, o galope dos cavalos e tudo o que ainda não aconteceu?
Ou, ao contrário, estaríamos livres para sempre dizer tudo o que
quiséssemos, mesmo que aparentemente sem sentido nenhum, já que
todas as palavras sempre conteriam todo o conhecimento do mundo e da
humanidade? E será que então estaríamos sempre, a todo momento,
realizando o sonho da biblioteca de Babel, do livro dos livros,
simplesmente ao falar, mesmo que seja “que horas são”? Tudo isso
era porque eu queria contar um caso simples, que achei que, por ser
tão simples e maternal, não teria estofo para preencher uma
história. Foi então que lembrei que havia recentemente aprendido
com meu fígado, com as coxas, com os cílios, que todas as histórias
são intermináveis e contêm todas as outras que já foram, não
foram, serão e não serão contadas, e então percebi que sim, que
eu poderia contar essa história boba, porque ela conteria também as
histórias que todas as mães contaram aos filhos nas casas das
aldeias polonesas do século XII , e as histórias que os condenados
ao calabouço pensaram antes de morrer, e as histórias que meus
sucessores no futuro vão contar sobre um passado distante, quando um
pio de passarinho ainda se misturava ao barulho de um motor velho de
caminhão. E a história que minha filha me contou é que o pai dela
um dia lhe disse que “nada é perfeito”. E ela, como era criança
— e como as crianças acreditam na integridade das palavras dos
adultos, porque para elas os adultos sempre dizem a verdade, sem
saber que na realidade são elas, em sua crença, que são
proprietárias da verdade que existe, e que consiste somente em
acreditar nela e não em dizê-la, porque no momento em que você diz
qualquer coisa você já está mentindo, mas não dizer e acreditar
na verdade do que os outros dizem, aí fosse perfeito? Se aquilo era
verdade, como minha filha continuaria acreditando na verdade perfeita
do que dizia o pai? Se tudo o que o pai diz é perfeito em si mesmo,
independentemente do conteúdo, perfeito só na condição única de
ser pronunciado por um pai, como pode então um pai dizer que “nada
é perfeito”? Se essa frase é perfeita, por ter sido emitida pelo
pai, o que resta do pai? E o pai, que desenha muito bem, desenhou um
dos 101 dálmatas para a minha filha. E o desenho era
perfeito, idêntico ao dálmata que aparecia na figura do livro de
histórias. E minha filha pensou que era impossível que nada fosse
perfeito e entregou-se ao exercício de encontrar algum defeito no
desenho do dálmata perfeito, porque seu pai lhe dissera que nada é
perfeito. Se ela achasse perfeito o desenho do dálmata, estaria
traindo a verdade do pai. Se, respeitando-o, achasse o desenho do
dálmata imperfeito, trairia então sua percepção da perfeição,
seu amor à capacidade absoluta de seu pai de desenhar um dálmata
perfeito.
É assim, imagino, e aqui fiz meu
primeiro parágrafo nesta história que eu supunha interminável, mas
que agora, por ter posto o parágrafo, percebi que se aproxima do
fim, é assim que a credulidade se desequilibra, estremece o pomo da
certeza e se transforma numa pergunta, metralhadora sagrada do medo,
do sonho e da maldição. É assim, acho, e isso já soa como uma
moral da história, mas eu não me importo nem um pouco que seja
assim, porque não tenho nada contra morais de histórias, porque já
que as histórias acabam, então que elas acabem alguma hora, e que
pelo menos seja com algum pequeno ensinamento, para que a tristeza do
fim de qualquer coisa e de qualquer história se carregue de alguma
textura tátil e o homem que ouviu a história vá para casa
pensativo e tome café e pense se ele quer mesmo trabalhar naquela
noite e olhe para sua mulher que está lutando com a boca do fogão
que não acende, com um carinho que voltou e logo vai desaparecer.
Mas eu dizia que acho que é assim, com a instalação da dúvida
como um cabo elétrico instalado por um eletricista numa criança, é
assim que o tempo começa a atuar sobre o olhar curioso e o torna um
pouco desconfiado. E é assim que nos tornamos temporais, fartamente
solitários e amantes incompreensíveis da solidão, incapazes, como
eu sou, de compreender a história infinita, o caso milenar que está
a querer me contar aquele cruzamento de duas montanhas, uma mais alta
e outra mais baixa, que eu vejo paradas no horizonte. Elas estão
falando, ouço o eco de uma história silenciosa, que contém toda a
verdade do tempo, das histórias, das palavras e do silêncio. Mas
não consigo ouvir.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
Nenhum comentário:
Postar um comentário