No domingo de manhã, começou a nevar.
Os alvos flocos caíam rápidos e espessos; as pequenas vidraças da
casa amarela ficaram forradas de neve.
Mais cedo nesse dia um cavalariço vindo
de Fossum trouxe um bilhete às duas irmãs. A velha senhora
Loewenhielm ainda residia em sua casa de campo. Estava agora com
noventa anos de idade e surda como uma porta, e perdera todo o
sentido do olfato ou do paladar. Mas fora uma das primeiras
seguidoras do deão e nem sua enfermidade, nem a viagem de trenó
impediriam-na de honrar sua memória. Agora, escrevia, o sobrinho,
general Lorens Loewenhielm, aparecera inesperadamente para uma
visita; falara com profunda veneração do deão e a mulher rogava
permissão para levá-lo junto. Faria-lhe bem, pois o caro rapaz
parecia um pouco deprimido.
Martine e Philippa, ao ler aquilo,
lembraram-se do jovem oficial e de suas visitas; era um alívio para
sua ansiedade presente falar a respeito dos velhos dias felizes.
Escreveram de volta para dizer que o general Loewenhielm seria
bem-vindo. Também chamaram Babette para informá-la que agora seriam
doze para o jantar; acrescentaram que o último convidado vivera em
Paris por vários anos. Babette pareceu feliz com a notícia e
assegurou-lhes que a comida seria suficiente.
As anfitriãs fizeram seus pequenos
preparativos na sala de visitas. Não ousavam pôr o pé na cozinha,
pois Babette arranjara misteriosamente um ajudante de um navio do
porto – o mesmo rapaz, percebeu Martine, que trouxera a tartaruga –
para auxiliá-la na cozinha e servir à mesa, de modo que agora a
mulher morena e o rapaz ruivo, como uma bruxa com seu demônio
familiar, haviam tomado posse daquelas paragens. As duas senhoras não
saberiam dizer que chamas queimavam ou que caldeirões borbulhavam
ali desde antes do amanhecer.
Toalhas e guardanapos e jogos de pratos
haviam sido magicamente passados pela calandra uns e polidos outros,
trouxeram-se copos e garrafas para servir licores, só Babette sabia
de onde. A casa do deão não possuía doze cadeiras na sala de
jantar, então o comprido sofá de crina de cavalo fora trazido da
sala de estar, que, sempre escassamente mobiliada, agora parecia
estranhamente grande e desguarnecida sem ele.
Martine e Philippa fizeram o melhor
possível para embelezar os domínios deixados a elas. Fossem quais
fossem os apertos que pudessem estar à espera de seus convidados, em
todo caso ao menos não passariam frio; por todo o dia, as irmãs
alimentaram o imenso aquecedor com tocos de bétula. Penduraram uma
coroa de zimbros em torno do retrato do pai na parede e puseram
castiçais na pequena mesa de costura de sua mãe, sob ele; queimaram
ramos de zimbro para espalhar um odor agradável pelo ambiente. Nesse
ínterim, perguntavam-se se com aquele tempo o trenó vindo de Fossum
conseguiria chegar. No fim, arrumaram-se com seus melhores vestidos
pretos velhos e os crucifixos de ouro da crisma. Sentaram-se,
cruzaram as mãos no colo e se consagraram a Deus.
Os velhos irmãos e irmãs chegaram em
pequenos grupos e entraram na sala lenta e solenemente.
O cômodo baixo com seu piso nu e mobília
parca era caro aos discípulos do deão. Além de suas janelas ficava
o vasto mundo. Visto do lado de dentro, o vasto mundo em sua alvura
hibernal era sempre lindamente delineado em rosa, azul e vermelho
pela fileira de jacintos nos peitoris. E no verão, quando as janelas
estavam abertas, o vasto mundo era emoldurado por cortinas levemente
esvoaçantes de branca musselina.
Nessa noite, os convidados foram
acolhidos na soleira pelo calor e o cheiro agradável e fitaram o
rosto do estimado mestre engrinaldado por sempre-vivas. Seus
corações, assim como os dedos adormecidos, se aqueceram.
Um irmão muito idoso, após alguns
minutos de silêncio, com a voz trêmula começou a entoar um dos
hinos escritos pelo próprio mestre:
Jerusalém, minha terra feliz,
nome para mim sempre querido…
Uma a uma, as demais vozes se juntaram,
finas e alquebradas vozes de mulheres, guturais vozeirões de velhos
confrades e lobos do mar, e acima de todas o límpido soprano de
Philippa, um pouco abatido pela idade, mas ainda angelical.
Involuntariamente, o coro dera-se as mãos. Cantaram o hino até o
fim, mas não conseguiram parar e emendaram mais um:
Descuida de roupa ou alimento,
Zeloso, e tanta angústia…
As donas da casa tranquilizaram-se um
pouco ao ouvi-lo, e as palavras da terceira estrofe
Darias uma pedra, um réptil,
De alimento a teu filho suplicante?…
calaram fundo no coração de Martine,
enchendo-a de esperança.
Na metade desse hino, sinos de trenó
foram ouvidos do lado de fora; os convidados de Fossum haviam
chegado.
Martine e Philippa foram recebê-los e os
acompanharam até a sala de visitas. A senhora Loewenhielm, com a
idade, ficara um tanto miúda, com um rosto pálido como pergaminho e
bastante impassível. A seu lado, o general Loewenhielm, alto, largo,
rubicundo, com seu uniforme brilhante, o peito coberto de
condecorações, empertigava-se e cintilava como uma ave ornamental,
um faisão dourado ou um pavão, em meio ao austero grupo preto de
corvos e gralhas.
Karen Blixen, in A festa de Babette
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