Em sua autobiografia, A guerra: uma
memória, Marguerite Duras conta como procedeu para ajudar a
resistência francesa a assassinar um oficial nazista. Esse sempre
foi um de meus sonhos irrealizáveis, sobretudo da forma como ela o
fez. Mas, infelizmente, eu nem havia nascido naquela época. Duras
conta que, na noite francesa, esse oficial de alta patente havia se
apaixonado por ela. Parece que era mesmo uma mulher linda, o que
talvez explique todas as paixões que ela manteve, incluindo a
inesquecível relação narrada no livro O amante , depois
transformado em filme, e que conta sua história com um homem muito
mais velho, ainda da época em que ela vivia na Indochina.
O alemão começou a segui-la
insistentemente, oferecendo-lhe garantias de segurança e também a
seus amigos — que ele decerto sabia pertencerem à resistência —
caso ela se rendesse a seus apelos. Aos poucos, ela fez que ia
cedendo, tudo para finalmente emboscá-lo num encontro em que o
oficial apaixonado acreditava que os dois iriam planejar uma fuga,
apenas para que seus camaradas da resistência pudessem mirá-lo com
precisão e matá-lo. O plano e sua execução seguem uma estratégia
tão precisa e a sensação de vitória dela e dos amigos, ainda que
mínima, é tão contagiante, que não resta ao leitor futuro mais do
que sonhar que estivesse também ali, participando da pequena revolta
contra o imponderável.
Entretanto, embora parecendo se esmerar
nos detalhes, Marguerite Duras silencia sobre algo que, ao menos para
leitores brasileiros, é extremamente relevante: entre seus
camaradas, estava ninguém menos do que Rubem Braga. É claro, a
autobiografia é dela, é de si mesma que está falando, e não há
como nem por que ela declarar os nomes de todos os colegas que
tiveram parte nesse plano.
É bem conhecido que Rubem Braga foi
jornalista e cobriu ativamente o envolvimento do Exército brasileiro
nas batalhas italianas. Mas, quando podia, em seus momentos de folga,
Braga ia também a outros lugares, entre eles Paris. E foi lá, em
1944, quando, mesmo já próximo do final da guerra, o nazismo
recrudescia terrivelmente, que Braga conheceu Duras — nada se sabe
sobre algum namoro entre eles, embora tudo conspire para que, sim, os
dois tenham tido algum envolvimento (ao menos eu daria tudo para que
assim tenha acontecido) — e pôde ajudá-la a realizar seu plano. É
claro que Braga jamais contaria isso a alguém, muito menos
publicamente, já que uma de suas características mais conhecidas —
e mais elogiáveis — era a extrema humildade. Além do mais, cabia
apenas a ela narrar algo dessa natureza, extremamente íntimo e
possivelmente condenável.
Quem acabou por me relatar essa história,
depois que confessei que eu mesma gostaria de ter estado no lugar de
Duras, foi uma tia de Joana, a mulher a quem Braga costumava dedicar
várias das crônicas publicadas na coluna “Ordem do Dia”, que
saía por aquela época no Diário Carioca e que era, folclórica mas
também verdadeiramente, uma das namoradas do cronista. Eu a conheci
por acaso, quando estive uma vez, há não muito tempo, em Fortaleza.
Uma senhora simpática e já idosa, que mais nada tinha a perder se
me contasse essa curiosidade, como ela disse. Preciso confessar que
nem fiquei tão surpresa. Não podia esperar nada menos do que isso
de Rubem Braga, um dos maiores de nossa literatura — sem dúvida o
maior cronista — e também uma das criaturas de alma grande que já
viveram no país.
Desde logo, Braga nunca fez segredo de
sua posição contrária à política getulista e fez advertências
precoces sobre o nazismo:
“Não temos dois caminhos a seguir.
Nossa tarefa é clara: ajudar a arrebentar a máquina monstruosa do
nazismo, ameaça ao Brasil e ao mundo. Isso é o essencial, é o
urgente — é a um só tempo a necessidade, a honra e o dever. A
estupidez nazista já se encarregou de vir até nós fazer
demonstrações frias e covardes de si mesma. […] Unamo-nos para a
guerra.”
De forma inclusive discutível, e que até
lhe rendeu inimigos, Braga foi francamente favorável à participação
dos pracinhas na guerra mundial.
Numa de suas crônicas, o autor confessa
ter inveja dos jovens soldados brasileiros que iriam à guerra e como
ele mesmo gostaria de estar em seu lugar. Talvez tenha sido esse o
motivo que o fez ajudar Duras, não sabemos.
A nonagenária tia de Joana, embora
temerosa, concedeu em me mostrar rapidamente uma carta escrita por
Braga e endereçada a Duras. Fiquei tão nervosa com o inusitado da
coisa que a vista embaçou e não consegui reter todas as palavras,
mas lembro de algumas frases — embora não possa atestar sua
veracidade, muito contaminada pela emoção. Logo ao sair, anotei num
papel qualquer o que pude lembrar.
Havia passagens assim: “E por ser
impessoal e não ter pressa nem rumo, por ter um capote e sapatos
grossos e por andar entre meus desconhecidos irmãos, eu me senti
mais livre. E cumpri os ritos da multidão, comprei meu jornal, tomei
meu café, li o placar das últimas notícias, fiquei um instante
distraído mirando os frangos que giravam se tostando numa
rotisseria”. E esta outra: “Outro dia vi uma linda mulher, e
senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela
estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a
gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a
patrulha que faz um reconhecimento. Mas por quê, para quê, essa
eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?”. Ou
ainda, e aqui, creio que ele assentia em tomar parte da empreitada
com ela: “Eu disse apenas, humilde: ‘Prometo’. E então pela
primeira vez em muitos e muitos anos de longas noites, eu pude
adormecer sorrindo, porque meu coração era puro como o de um
menino”.
Não coube a Braga nem a Duras legar essa
história à posteridade. Para Duras, deve ter se tratado de mais um
entre tantos que tiveram a alegria passageira de participar dessa
operação. Para Braga, depois de tudo o que ele já havia
testemunhado na Itália, tantos gestos nobres por meninos bem mais
jovens do que ele, não se tratava de algo a ser relatado ou de que
se gabar. Mas para a tia de Joana e para mim, que não temos sapatos
grossos nem um capote, e que não andamos entre desconhecidos irmãos,
Rubem Braga nos fez sentir mais livres, um pouco que seja.
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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