segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O namoro de Philippa

Um ano mais tarde, uma pessoa ainda mais notável do que o tenente Loewenhielm foi a Berlevaag.

O grande cantor Achille Papin, de Paris, cantara por um ano na Ópera Real, em Estocolmo, e lá, como em toda parte, arrebatara seu público. Certa noite, uma dama da corte, que sonhava em ter um romance com o artista, descrevera-lhe a paisagem selvagem e grandiosa da Noruega. Sua própria natureza romântica foi agitada pelo relato e ele incluiu no trajeto de volta à França uma passagem pela costa norueguesa. Porém, sentiu-se pequeno naquele cenário sublime; sem ninguém com quem conversar, mergulhou numa melancolia em que via a si mesmo como um velho em fim de carreira, até que num domingo, quando não conseguia imaginar outra coisa para fazer, foi à igreja e ouviu Philippa cantar.

Então, num lampejo, percebeu e compreendeu tudo. Pois ali estavam os picos nevados, as flores selvagens e as brancas noites nórdicas traduzidas em sua própria linguagem musical e levadas até ele pela voz de uma jovem. Como Lorens Lowenhielm, teve uma visão.

Deus Todo-Poderoso”, pensou, “Vosso poder não conhece limites e Vossa misericórdia eleva-se até as nuvens! E aqui está uma prima-dona da ópera que vai deixar Paris a seus pés.”

Achille Papin, nessa época, era um belo quarentão, com cabelos pretos encaracolados e boca vermelha. A idolatria de nações não o estragara; era uma pessoa de bom coração e honesto consigo mesmo.

Foi direto à casa amarela, deu seu nome – que para o deão não dizia nada – e explicou que passava uma estadia em Berlevaag para cuidar da saúde e, enquanto isso, ficaria feliz em ter a jovem dama como sua pupila.

Não mencionou a Ópera de Paris, mas descreveu minuciosamente como seria lindo o canto da senhorita Philippa na igreja, para a glória do Senhor.

Em determinado momento cometeu um deslize, pois quando o deão perguntou se era um católico romano, respondeu segundo a verdade, e o velho clérigo, que jamais vira um católico romano, ficou um tanto pálido. Mesmo assim, o deão alegrou-se de poder exercitar o francês, que o lembrava seus dias de juventude, quando estudara as obras do grande escritor luterano francês Lefèvre d’Étaples. E, como ninguém era capaz de fazer frente a Achille Papin quando de fato punha todo seu empenho num assunto, no fim o pai acabou concordando, e observou para a filha: “Os caminhos do Senhor correm pelo oceano e pelas montanhas nevadas, onde o olhar do homem não enxerga nenhum rastro”.

Assim, o grande cantor francês e a jovem aprendiz norueguesa puseram-se a trabalhar juntos. As expectativas de Achille tornaram-se uma certeza e a certeza transformou-se em êxtase. Pensava: “Errei em pensar que estava ficando velho. Meus maiores triunfos encontram-se diante de mim! O mundo vai voltar a acreditar em milagres quando cantarmos juntos!”.

Após algum tempo, não conseguiu mais guardar seus sonhos para si mesmo e contou a Philippa sobre eles.

Ela iria, disse, subir como uma estrela acima de qualquer diva do passado ou do presente. O imperador e a imperatriz, os príncipes, as nobres damas e bels esprits de Paris iriam ouvi-la e verter lágrimas. As pessoas comuns também iriam venerá-la e levaria consolo e força aos injustiçados e oprimidos. Quando deixasse a Grand Opéra de braços dados com o mestre, a multidão a tiraria do cavalo e a conduziria nos ombros ao Café Anglais, onde uma ceia magnífica a aguardava.

Philippa não repetiu essas expectativas para seu pai ou sua irmã e essa foi a primeira vez em sua vida que guardava um segredo deles.

O professor agora dava à pupila o papel de Zerlina na ópera Don Giovanni, de Mozart, para estudar. Ele próprio, como tantas vezes antes, cantaria o papel de Don Giovanni.

Jamais em sua vida cantara como agora. No dueto do segundo ato – chamado o dueto da sedução – flutuava de emoção com a música celestial e as vozes celestiais. Quando a última nota comovente agonizou, agarrou as mãos de Philippa, puxou-a para junto de si e beijou-a solenemente, como um noivo beijaria a noiva diante do altar. Então a soltou. Pois o momento era sublime demais para quaisquer outros gestos ou palavras; Mozart em pessoa olhava os dois lá do alto.

Philippa foi para casa, disse ao pai que não queria mais saber de aulas de canto e pediu-lhe para escrever e dizer tal coisa a Monsieur Papin.

O deão disse: “E os caminhos do Senhor correm pelos rios, minha criança”.

Quando Achille recebeu a carta do deão, sentou-se imóvel por uma hora. Pensou: “Eu me enganei. Meu dia chegou. Nunca mais serei o divino Papin. E este pobre jardim inculto do mundo perdeu seu rouxinol!”.

Um pouco depois, pensou: “Fico me perguntando qual será o problema com aquela diabinha? Será que por acaso a beijei?”.

No fim, pensou: “Perdi minha vida por um beijo e não guardo a menor lembrança desse beijo! Don Giovanni beijou Zerlina e Achille Papin é quem paga! Tal é o destino do artista!”.

Na casa do deão, Martine pressentia que a questão era mais profunda do que parecia e perscrutava o rosto da irmã. Por um momento, com um ligeiro tremor, também imaginou que o cavalheiro católico romano talvez houvesse tentado beijar Philippa. Mas não imaginava que a irmã pudesse ter ficado surpresa e atemorizada com algo de sua própria natureza.

Achille Papin tomou o primeiro barco que saiu de Berlevaag.

Sobre o visitante do grande mundo, as irmãs falaram muito pouco; faltavam-lhes as palavras com que discuti-lo.

Karen Blixen, in A festa de Babette

Nenhum comentário:

Postar um comentário