Daí,
sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do
engenho, deitados em couros e esteiras ― nem se tinha o espaço de
lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu não queria
conversa, as ideias que já estavam se acontecendo eram maiores.
Assim eu ouvindo o cicirí dos grilos. Na beira da rebaixa, a
fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve lá, mexendo
em tição, pitou um cigarro. O Jesualdo, Fafafa e JoãoVaqueiro não
esbarravam de falar, mais o Alaripe também, repesavam as vantagens
da Santa Catarina. No que eu pensava? Em Otacília. Eu parava sempre
naquela meia-incerteza, sem saber se ela sim-se. Ao que nós todos
pensávamos as mesmas coisas; o que cada um sonhava, quem é que
sabia?
― Aquilo
é poço que promete peixe... ― o Jesualdo disse. Dela devia de
ser. ― Amigo, não toque no nome dessa moça, amigo!... ― eu
falei. Ninguém deu resposta, eles viam que era a sério fatal,
deviam de estar agora desqueixelados, no escuro. Por longe, a
mãe-da-lua suspirou o grito: ― Floriano, foi, foi, foi... ―
que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua estava se
saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim fica mirando, apaixonada
abobada. Deitado quase encostado em mim, Diadorim formava um silêncio
pesaroso. Daí, escutei um entredizer, percebi que ele ansiava raiva.
De repente.
― Riobaldo,
você está gostando dessa moça?
Aí
era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro do rosto dele me
procurando. Deu para eu ver que ele estava branco de transtornado? A
voz dele vinha pelos dentes.
― Não,
Diadorim. Estou gostando não... ― eu disse, neguei que reneguei,
minha alma obedecia.
― Você
sabe do seu destino, Riobaldo?
Não
respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio ocultado. Não
tive medo de morrer. Só não queria que os outros percebessem a má
loucura de tudo aquilo. Tremi não.
― Você
sabe do seu destino, Riobaldo? ― ele reperguntou. Aí estava
ajoelhado na beira de mim.
― Se
nanja, sei não. O demônio sabe... ― eu respondi. ― Pergunta...
Me
diga o senhor! por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de
Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da cruz, não fiz
esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo obedece ― vivo no
momento. Diadorim encolheu o braço, com o punhal, se defastou e
deitou de corpo, outra vez. Os olhos dele dansar produziam, de estar
brilhando. E ele devia de estar mordendo o correiame de couro.
Assisado,
me enrolei bem no cobertor; mas não adormeci. Eu tinha dó de
Diadorim, eu ia com meu pensamento para Otacília. Me balanceei
assim, adiantado na noite, em tanto gaio, em tanto piongo, com todas
as novas dúvidas e ideias, e esperanças, no claro de uma espertina.
Com muito, me levantei. Saí. Tomei a altura do sete-estrelo. Mas a
lua subia estada, abençoando redondo o friinho de maio. Era da
borda-do-campo que a mãe-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto
de árvores da mata cercã. Quando a lua subisse mais, as estrelas se
sumiam para dentro, e até as seriemas podiam se atontar de gritar.
Ao que fiquei bom tempo encostado no cajueiro da beira do curral. Só
olhava para a frente da casa-da-fazenda, imaginando Otacília
deitada, rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo dos lençois
lavados e soltos, ela devia de sonhar assim. E, de repente, pressenti
que alguém tinha vindo por detrás de mim, me vigiava. Diadorim,
fosse? Não virei a cara para ver. Não tive receio. Nunca posso ter
medo das pessoas de quem eu gosto. Digo. Esperei mais, outro tempo.
Daí, vim voltando. Mas lá não estava pessoa nenhuma, entre
claridade e sombras. Ilusão minha, a fantasiação. Bebi água do
rego, com o frio da noite ela corria morna. Tornei a entrar na
rebaixa. Diadorim permanecia lá, jogado de dormir. De perto, senti a
respiração dele, remissa e delicada. Eu aí gostava dele. Não
fosse um, como eu, disse a Deus que esse ente eu abraçava e beijava.
E, com o vago, devo de ter adormecido ― porque acordei quando
Diadorim no mexe leve se levantou, saíu sem rumor, levando a
capanga, ia tomar seu banho em poço de córrego, das barras no
clarear. Desde o que, depressa eu tornei a me dormir.
Mas,
cedo no amanhecer, o sôr Amadeu tinha chegado, e com notícia
urgente: que o grosso do bando de Medeiro Vaz recruzava, de lá a
quinze léguas, da Vereda-Funda para a Ratragagem, e nós tínhamos
de seguir, sem folga, supraditamente. No que Nhô Vô Anselmo me deu
um dito afeiçoado e diferente ― entendi que o velhozinho sabia de
alguma coisa, e que não desgostava que eu viesse a ficar neto dele.
Nós almoçamos e montamos. Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João
Vaqueiro se retiraram em adiantando, e o Fafafa. Mas eu cacei melhor
coragem, e pedi meu destino a Otacília. E ela, por alegria minha,
disse que havia de gostar era só de mim, e que o tempo que carecesse
me esperava, até que, para o trato de nosso casamento, eu pudesse
vir com jús. Saí de lá aos grandes cantos, tempo-do-verde no
coração. Por breve ― pensei ― era que eu me despedia daquela
abençoada fazenda Santa Catarina, excelentes produções. Não que
eu acendesse em mim ambição de têres e havêres; queria era só
mesma Otacília, minha vontade de amor. Mas, com um significado de
paz, de amizade de todos, de sossegadas boas regras, eu pensava: nas
rezas, nas roupagens, na festa, na mesa grande com comedorias e
doces; e, no meio do solene, o sôr Amadeu, pai dela, que apartasse ―
destinado para nós dois ― um buritizal em dote, conforme o uso dos
antigos.
Vim.
Diadorim nada não me disse. A poeira das estradas pegava pesada de
orvalho. O birro e o jesus-meu-deus cantavam. O melosal maduro alto,
com toda sua roxidão, roxura. Mas, o mais, e do que sei, eram mesmo
meus fortes pensamentos. Sentimento preso. Otacília. Por que eu não
podia ficar lá, desde vez? Por que era que eu precisava de ir por
adiante, com Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte,
nestes Gerais meus? Destino preso. Diadorim e eu viemos, vim; de rota
abatida. Mas, desse dia desde, sempre uma parte de mim ficou lá, com
Otacília. Destino. Pensava nela. As vezes menos, às vezes mais,
consoante é da vida. As vezes me esquecia, às vezes me lembrava.
Foram esses meses, foram anos. Mas Diadorim, por onde queria, me
levava. Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim
adivinhava, sabia, sofria.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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