quarta-feira, 3 de junho de 2020

Misto-Quente - 15


Meu pai sempre expulsava da nossa casa os garotos da vizinhança. Me diziam para não brincar com eles, mas eu caminhava pela rua e os via, de qualquer modo.
Ei, Henrizinho! – eles gritavam. – Por que você não volta pra Alemanha?
De alguma maneira, tinham descoberto sobre o meu local de nascimento. O pior é que todos eles tinham a mesma idade que eu e não andavam juntos apenas porque moravam na mesma vizinhança, mas porque frequentavam o mesmo colégio católico. Eram garotos durões, jogavam futebol americano de verdade por horas a fio e quase que diariamente dois deles brigavam a socos. Os quatro cabeças da turma eram Chuck, Eddie, Gene e Frank.
Ei, Henrizinho, volte pra Chucrutlândia!
Não tinha como me enturmar com eles...
Então um garoto ruivo se mudou para a casa vizinha à de Chuck. Frequentava uma espécie de escola especial. Certo dia, eu estava sentado na beira da calçada quando ele saiu de casa. Sentou-se ao meu lado no cordão.
Olá, meu nome é Red.
Me chamo Henry.
Ficamos sentados, olhando os garotos jogar futebol. Olhei para Red.
Por que você usa uma luva na mão esquerda? – perguntei.
Só tenho um braço – respondeu.
Essa mão parece de verdade.
É falsa. O braço todo é falso. Toque-o.
O quê?
Toque-o. É falso.
Toquei-o. Era duro, duro como pedra.
Como isso aconteceu?
Nasci assim. O braço é artificial até a altura do cotovelo. Preciso prendê-lo. Tenho pequenos dedos ao final no meu cotovelo, com unhas e tudo, mas os dedos não servem para nada.
Você tem algum amigo? – perguntei.
Não.
Nem eu.
Esses caras não jogam com você?
Não.
Tenho uma bola de futebol.
Você consegue agarrá-la?
Moleza – disse Red.
Vá buscá-la.
Beleza...
Red entrou na garagem do pai e saiu com a bola. Lançou-a para mim. Então recuou no pátio em frente à sua casa.
Vamos lá, jogue...
Mandei. Ergueu seu braço bom e logo também o ruim e pegou o arremesso. O braço produziu um ruído baixo agudo quando ele agarrou a bola.
Bela pegada – eu disse. – Agora lance uma para mim!
Ele ergueu o braço e fez a bola voar; veio como uma bala e tive que dar um jeito de segurá-la depois que bateu no meu estômago.
Você está muito perto – falei. – Recue um pouco mais.
Finalmente, pensei, um pouco de prática em pegadas e arremessos. Era realmente muito bom.
Então era minha vez de lançar. Recuei, afastei um marcador invisível e lancei uma bola com efeito. Red correu para frente, pegou a bola, rolou três ou quatro vezes no chão e continuou de posse dela.
Você é bom, Red. Como consegue jogar tão bem?
Meu pai me ensinou. Nós treinamos bastante.
Em seguida Red recuou e fez a bola voar. Parecia que ela ia me encobrir enquanto eu recuava para apanhá-la. Havia uma cerca entre a casa de Red e a de Chuck, e eu tropecei nela. A bola pegou no topo da cerca e caiu para o outro lado. Dei a volta ao redor do quintal do Chuck para buscá- la. Chuck me alcançou a bola.
Quer dizer que você arranjou um amigo esquisito, hein, Henrizinho?
Dois dias se passaram, e Red e eu estávamos jogando no gramado em frente à sua casa, passando e chutando a bola. Chuck e seus amigos não estavam nas redondezas. Red e eu melhorávamos a olhos vistos. Treinar era tudo o que era preciso. Tudo que um cara precisava era de uma chance. Alguém estava sempre controlando quem merecia ou não essa chance.
Peguei um arremesso por sobre o ombro, girei e mandei a bola de volta a Red, que saltou bem alto e tocou o chão com ela. Talvez um dia jogássemos pela U.S.C. . Então avistei cinco garotos avançando pela calçada em nossa direção. Não era nenhum dos rapazes da escola primária. Tinham a nossa idade e pareciam estar em busca de confusão. Red e eu continuamos passando a bola e eles ficaram nos observando.
Logo um dos garotos pisou no gramado. O maior de todos.
Me jogue a bola – ele disse ao Red.
Por quê?
Quero ver se consigo pegá-la.
Não dou a mínima se você consegue pegá-la ou não.
Ele só tem um braço – eu disse. – Deixe-o em paz.
Fique fora disso, cara de macaco! – Então olhou para Red. – Joga a bola.
Vá pro inferno!
Peguem a bola! – o grandalhão disse aos outros.
Correram para cima de nós. Red se voltou e jogou a bola para cima do telhado da sua casa. Era inclinado, e a bola rolou de volta, mas ficou presa numa calha. Então se lançaram sobre nós. Cinco contra dois, pensei, não temos nenhuma chance. Tomei um soco na cabeça e revidei sem sucesso. Alguém me deu um chute na bunda. Foi um dos bons, e a dor subiu pela minha espinha. Foi quando ouvi um estouro, quase como um tiro de espingarda, e um deles estava no chão, com a mão na testa.
Oh, merda – ele disse –, quebraram meu crânio!
Olhei para Red e ele estava no meio do gramado. Segurava seu braço postiço com a mão do braço bom. Era como um taco. Desferiu mais um golpe. Houve mais um estouro e outro deles desabou no gramado. Comecei a me encher de coragem e acertei um direto na boca de um dos caras. Vi o lábio se abrir e o sangue jorrar sobre o queixo. Os outros dois saíram correndo. Então o grandalhão, que havia sido o primeiro a cair, se ergueu, juntamente com o outro. Tinham as mãos nas cabeças. O garoto com a boca arrebentada continuava ali. Em seguida, os três recuaram até a rua e foram embora juntos. Quando já estavam a uma boa distância, o grandalhão se virou e disse:
Vamos voltar!
Red começou a correr na direção deles e eu o segui. Eles começaram a correr e Red e eu desistimos da perseguição assim que viraram a esquina. Caminhamos de volta, encontramos uma escada na garagem. Pegamos a bola e começamos novamente com os passes...
Um sábado Red e eu decidimos ir nadar na piscina pública da rua Bimini. Red era um cara estranho. Não era de falar muito, mas como falar também não era minha especialidade nos dávamos bem. De qualquer modo, não havia muito a ser dito. A única coisa que realmente lhe perguntei foi sobre a escola que frequentava, ao que ele me respondeu de modo sucinto que se tratava de uma escola especial e que custava a seu pai uma grana considerável.
Chegamos na piscina no início da tarde, fomos até os armários e tiramos a roupa. Estávamos com nossos calções de banho por baixo. Então vi Red desatar o braço e colocá-lo dentro do armário. Era a primeira vez desde o dia da luta que o via sem seu braço postiço. Tentei não olhar para seu braço, que terminava no cotovelo. Caminhamos até um lugar em que você era obrigado a enfiar os pés numa solução de cloro. Fedia, mas evitava a proliferação de frieiras ou coisas do tipo. Depois caminhamos até a piscina e entramos. A água também fedia, e, logo que a água me cobriu, mijei. Havia pessoas de todas as idades tomando banho, homens e mulheres, meninos e meninas. Red realmente gostava da água. Saltitava dentro dela. Em seguida mergulhava, desaparecendo e em seguida voltando à superfície. Cuspia a água que tinha dentro da boca. Tentei nadar. Não podia deixar de notar o braço deformado de Red, não podia deixar de olhá-lo. Procurava sempre observá-lo quando me parecia que ele estava distraído com outra coisa. O braço terminava no cotovelo, numa espécie de curva, e então vi os dedinhos. Não quis olhar muito fixamente, mas acho que eram três ou quatro deles, pequeninos e curvos. Eram muito vermelhos e cada um deles tinha uma unha. Nenhum continuaria a crescer; ficariam assim. Não queria pensar naquilo. Mergulhei. Ia dar um susto em Red. Agarraria suas pernas por trás. Bati em alguma coisa mole. Era a bunda de uma gorda. Senti quando ela me agarrou pelos cabelos e me puxou para fora d’água. A gorda usava uma toca de banho azul, amarrada sob o queixo, formando um sulco na papada. Seus dentes da frente eram cobertos de prata e seu hálito fedia a alho.
Seu pervertidozinho imundo! Aproveitando para passar a mão à vontade, não?
Desvencilhei-me dela e comecei a recuar. À medida que me afastava ela me seguia pela água, seus seios flácidos provocando uma onda à sua frente.
Seu espertinho imundo! Quer chupar meus peitinhos? Você só pensa em sacanagens, hein? Quer comer minha merda? Que tal um pouquinho da merda que sai do meu rabo, hein, espertinho?
Fugi para a parte mais funda da piscina. Estava agora na ponta dos pés, tentando me afastar ainda mais. Engoli um pouco de água. Ela continuava em meu encalço, um navio a vapor em forma de mulher. Foi diretamente para cima de mim. Seus olhos eram pálidos e esbranquiçados, não havia nenhuma cor neles. Senti o corpo dela tocando o meu.
Toque a minha boceta – ela disse. – Eu sei que você quer tocar nela, então, vá em frente, toque minha boceta. Toque! Toque!
Ela esperou.
Se você não fizer isso, vou dizer ao salva-vidas que você me molestou e ele vai colocá-lo na cadeia! Agora, me toque!
Eu não podia fazer aquilo. De súbito, ela invadiu meu calção, agarrou minhas partes e puxou. Ela quase arrancou meu pinto. Lancei-me para trás, mergulhando nas águas profundas, lutando para me afastar ao máximo. Quando emergi, estava a uns dois metros dela e comecei a nadar em direção à água rasa.
Vou dizer ao salva-vidas que você me molestou! – ela gritou.
Então um homem se interpôs entre nós, nadando.
Esse pequeno filho-da-puta! – ela berrou para o homem, apontando para mim. – Ele agarrou minha boceta!
Minha senhora – disse o homem –, o garoto provavelmente pensou que se tratasse da grade do ralo.
Nadei até onde estava Red.
Escute – eu disse –, temos que dar o fora daqui! Aquela gorda vai dizer ao salva-vidas que toquei a boceta dela!
E por que você fez uma coisa dessas?
Queria ver como era a sensação.
E como foi?
Saímos da piscina, tomamos uma ducha. Red colocou de volta o braço postiço e nos vestimos.
Você realmente tocou a boceta dela?
Ora, algum dia um garoto tem que começar a fazer isso.
Cerca de um mês depois, a família de Red se mudou. De um dia para o outro. Simples assim. Red nunca tinha me falado sobre essa possibilidade. Ele se foi, a bola de futebol se foi e se foram também aqueles pequeninos dedos vermelhos com suas unhas minúsculas. Ele era um cara bacana.
Charles Bukowski, in Misto-Quente

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