Meu
pai sempre expulsava da nossa casa os garotos da vizinhança. Me
diziam para não brincar com eles, mas eu caminhava pela rua e os
via, de qualquer modo.
– Ei,
Henrizinho! – eles gritavam. – Por que você não volta pra
Alemanha?
De
alguma maneira, tinham descoberto sobre o meu local de nascimento. O
pior é que todos eles tinham a mesma idade que eu e não andavam
juntos apenas porque moravam na mesma vizinhança, mas porque
frequentavam o mesmo colégio católico. Eram garotos durões,
jogavam futebol americano de verdade por horas a fio e quase que
diariamente dois deles brigavam a socos. Os quatro cabeças da turma
eram Chuck, Eddie, Gene e Frank.
– Ei,
Henrizinho, volte pra Chucrutlândia!
Não
tinha como me enturmar com eles...
Então
um garoto ruivo se mudou para a casa vizinha à de Chuck. Frequentava
uma espécie de escola especial. Certo dia, eu estava sentado na
beira da calçada quando ele saiu de casa. Sentou-se ao meu lado no
cordão.
– Olá,
meu nome é Red.
– Me
chamo Henry.
Ficamos
sentados, olhando os garotos jogar futebol. Olhei para Red.
– Por
que você usa uma luva na mão esquerda? – perguntei.
– Só
tenho um braço – respondeu.
– Essa
mão parece de verdade.
– É
falsa. O braço todo é falso. Toque-o.
– O
quê?
– Toque-o.
É falso.
Toquei-o.
Era duro, duro como pedra.
– Como
isso aconteceu?
– Nasci
assim. O braço é artificial até a altura do cotovelo. Preciso
prendê-lo. Tenho pequenos dedos ao final no meu cotovelo, com unhas
e tudo, mas os dedos não servem para nada.
– Você
tem algum amigo? – perguntei.
– Não.
– Nem
eu.
– Esses
caras não jogam com você?
– Não.
– Tenho
uma bola de futebol.
– Você
consegue agarrá-la?
– Moleza
– disse Red.
– Vá
buscá-la.
– Beleza...
Red
entrou na garagem do pai e saiu com a bola. Lançou-a para mim. Então
recuou no pátio em frente à sua casa.
– Vamos
lá, jogue...
Mandei.
Ergueu seu braço bom e logo também o ruim e pegou o arremesso. O
braço produziu um ruído baixo agudo quando ele agarrou a bola.
– Bela
pegada – eu disse. – Agora lance uma para mim!
Ele
ergueu o braço e fez a bola voar; veio como uma bala e tive que dar
um jeito de segurá-la depois que bateu no meu estômago.
– Você
está muito perto – falei. – Recue um pouco mais.
Finalmente,
pensei, um pouco de prática em pegadas e arremessos. Era realmente
muito bom.
Então
era minha vez de lançar. Recuei, afastei um marcador invisível e
lancei uma bola com efeito. Red correu para frente, pegou a bola,
rolou três ou quatro vezes no chão e continuou de posse dela.
– Você
é bom, Red. Como consegue jogar tão bem?
– Meu
pai me ensinou. Nós treinamos bastante.
Em
seguida Red recuou e fez a bola voar. Parecia que ela ia me encobrir
enquanto eu recuava para apanhá-la. Havia uma cerca entre a casa de
Red e a de Chuck, e eu tropecei nela. A bola pegou no topo da cerca e
caiu para o outro lado. Dei a volta ao redor do quintal do Chuck para
buscá- la. Chuck me alcançou a bola.
– Quer
dizer que você arranjou um amigo esquisito, hein, Henrizinho?
Dois
dias se passaram, e Red e eu estávamos jogando no gramado em frente
à sua casa, passando e chutando a bola. Chuck e seus amigos não
estavam nas redondezas. Red e eu melhorávamos a olhos vistos.
Treinar era tudo o que era preciso. Tudo que um cara precisava era de
uma chance. Alguém estava sempre controlando quem merecia ou não
essa chance.
Peguei
um arremesso por sobre o ombro, girei e mandei a bola de volta a Red,
que saltou bem alto e tocou o chão com ela. Talvez um dia jogássemos
pela U.S.C. . Então avistei cinco garotos avançando pela calçada
em nossa direção. Não era nenhum dos rapazes da escola primária.
Tinham a nossa idade e pareciam estar em busca de confusão. Red e eu
continuamos passando a bola e eles ficaram nos observando.
Logo
um dos garotos pisou no gramado. O maior de todos.
– Me
jogue a bola – ele disse ao Red.
– Por
quê?
– Quero
ver se consigo pegá-la.
– Não
dou a mínima se você consegue pegá-la ou não.
– Ele
só tem um braço – eu disse. – Deixe-o em paz.
– Fique
fora disso, cara de macaco! – Então olhou para Red. – Joga a
bola.
– Vá
pro inferno!
– Peguem
a bola! – o grandalhão disse aos outros.
Correram
para cima de nós. Red se voltou e jogou a bola para cima do telhado
da sua casa. Era inclinado, e a bola rolou de volta, mas ficou presa
numa calha. Então se lançaram sobre nós. Cinco contra dois,
pensei, não temos nenhuma chance. Tomei um soco na cabeça e revidei
sem sucesso. Alguém me deu um chute na bunda. Foi um dos bons, e a
dor subiu pela minha espinha. Foi quando ouvi um estouro, quase como
um tiro de espingarda, e um deles estava no chão, com a mão na
testa.
– Oh,
merda – ele disse –, quebraram meu crânio!
Olhei
para Red e ele estava no meio do gramado. Segurava seu braço postiço
com a mão do braço bom. Era como um taco. Desferiu mais um golpe.
Houve mais um estouro e outro deles desabou no gramado. Comecei a me
encher de coragem e acertei um direto na boca de um dos caras. Vi o
lábio se abrir e o sangue jorrar sobre o queixo. Os outros dois
saíram correndo. Então o grandalhão, que havia sido o primeiro a
cair, se ergueu, juntamente com o outro. Tinham as mãos nas cabeças.
O garoto com a boca arrebentada continuava ali. Em seguida, os três
recuaram até a rua e foram embora juntos. Quando já estavam a uma
boa distância, o grandalhão se virou e disse:
– Vamos
voltar!
Red
começou a correr na direção deles e eu o segui. Eles começaram a
correr e Red e eu desistimos da perseguição assim que viraram a
esquina. Caminhamos de volta, encontramos uma escada na garagem.
Pegamos a bola e começamos novamente com os passes...
Um
sábado Red e eu decidimos ir nadar na piscina pública da rua
Bimini. Red era um cara estranho. Não era de falar muito, mas como
falar também não era minha especialidade nos dávamos bem. De
qualquer modo, não havia muito a ser dito. A única coisa que
realmente lhe perguntei foi sobre a escola que frequentava, ao que
ele me respondeu de modo sucinto que se tratava de uma escola
especial e que custava a seu pai uma grana considerável.
Chegamos
na piscina no início da tarde, fomos até os armários e tiramos a
roupa. Estávamos com nossos calções de banho por baixo. Então vi
Red desatar o braço e colocá-lo dentro do armário. Era a primeira
vez desde o dia da luta que o via sem seu braço postiço. Tentei não
olhar para seu braço, que terminava no cotovelo. Caminhamos até um
lugar em que você era obrigado a enfiar os pés numa solução de
cloro. Fedia, mas evitava a proliferação de frieiras ou coisas do
tipo. Depois caminhamos até a piscina e entramos. A água também
fedia, e, logo que a água me cobriu, mijei. Havia pessoas de todas
as idades tomando banho, homens e mulheres, meninos e meninas. Red
realmente gostava da água. Saltitava dentro dela. Em seguida
mergulhava, desaparecendo e em seguida voltando à superfície.
Cuspia a água que tinha dentro da boca. Tentei nadar. Não podia
deixar de notar o braço deformado de Red, não podia deixar de
olhá-lo. Procurava sempre observá-lo quando me parecia que ele
estava distraído com outra coisa. O braço terminava no cotovelo,
numa espécie de curva, e então vi os dedinhos. Não quis olhar
muito fixamente, mas acho que eram três ou quatro deles, pequeninos
e curvos. Eram muito vermelhos e cada um deles tinha uma unha. Nenhum
continuaria a crescer; ficariam assim. Não queria pensar naquilo.
Mergulhei. Ia dar um susto em Red. Agarraria suas pernas por trás.
Bati em alguma coisa mole. Era a bunda de uma gorda. Senti quando ela
me agarrou pelos cabelos e me puxou para fora d’água. A gorda
usava uma toca de banho azul, amarrada sob o queixo, formando um
sulco na papada. Seus dentes da frente eram cobertos de prata e seu
hálito fedia a alho.
– Seu
pervertidozinho imundo! Aproveitando para passar a mão à vontade,
não?
Desvencilhei-me
dela e comecei a recuar. À medida que me afastava ela me seguia pela
água, seus seios flácidos provocando uma onda à sua frente.
– Seu
espertinho imundo! Quer chupar meus peitinhos? Você só pensa em
sacanagens, hein? Quer comer minha merda? Que tal um pouquinho da
merda que sai do meu rabo, hein, espertinho?
Fugi
para a parte mais funda da piscina. Estava agora na ponta dos pés,
tentando me afastar ainda mais. Engoli um pouco de água. Ela
continuava em meu encalço, um navio a vapor em forma de mulher. Foi
diretamente para cima de mim. Seus olhos eram pálidos e
esbranquiçados, não havia nenhuma cor neles. Senti o corpo dela
tocando o meu.
– Toque
a minha boceta – ela disse. – Eu sei que você quer tocar nela,
então, vá em frente, toque minha boceta. Toque! Toque!
Ela
esperou.
– Se
você não fizer isso, vou dizer ao salva-vidas que você me molestou
e ele vai colocá-lo na cadeia! Agora, me toque!
Eu
não podia fazer aquilo. De súbito, ela invadiu meu calção,
agarrou minhas partes e puxou. Ela quase arrancou meu pinto.
Lancei-me para trás, mergulhando nas águas profundas, lutando para
me afastar ao máximo. Quando emergi, estava a uns dois metros dela e
comecei a nadar em direção à água rasa.
– Vou
dizer ao salva-vidas que você me molestou! – ela gritou.
Então
um homem se interpôs entre nós, nadando.
– Esse
pequeno filho-da-puta! – ela berrou para o homem, apontando para
mim. – Ele agarrou minha boceta!
– Minha
senhora – disse o homem –, o garoto provavelmente pensou que se
tratasse da grade do ralo.
Nadei
até onde estava Red.
– Escute
– eu disse –, temos que dar o fora daqui! Aquela gorda vai dizer
ao salva-vidas que toquei a boceta dela!
– E
por que você fez uma coisa dessas?
– Queria
ver como era a sensação.
– E
como foi?
Saímos
da piscina, tomamos uma ducha. Red colocou de volta o braço postiço
e nos vestimos.
– Você
realmente tocou a boceta dela?
– Ora,
algum dia um garoto tem que começar a fazer isso.
Cerca
de um mês depois, a família de Red se mudou. De um dia para o
outro. Simples assim. Red nunca tinha me falado sobre essa
possibilidade. Ele se foi, a bola de futebol se foi e se foram também
aqueles pequeninos dedos vermelhos com suas unhas minúsculas. Ele
era um cara bacana.
Charles
Bukowski, in Misto-Quente
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