domingo, 28 de junho de 2020

Cosmonauta na Terra

"A Terra é azul", disse Yuri Gagarin

Extremamente atrasada, reflito sobre os cosmonautas. Ou melhor, sobre o primeiro cosmonauta. Quase um dia depois de Gagarin, nossos sentimentos já estavam atrasados em contraposição à velocidade com que o acontecimento nos ultrapassava. Agora, então, é atrasadíssima que repenso no assunto. É um assunto difícil de se sentir.

Um dia desses um menino, advertido de que a bola com que brincava cairia no chão e amolaria os vizinhos de baixo, respondeu: ora, o mundo já é automático, quando uma mão joga a bola no ar, a outra já é automática e pega-a, não cai não.

A questão é que nossa mão ainda não é bastante automática. Foi com susto que Gagarin subiu, pois se o automático do mundo não funcionasse a bola viria mais do que transtornar os vizinhos de baixo. E foi com susto que minha mão pouco automática tremeu à possibilidade de não ser rápida bastante e deixar o “acontecimento cosmonauta” me escapar. A responsabilidade de sentir foi grande, a responsabilidade de não deixar cair a bola que nos jogaram.

A necessidade de tornar tudo um pouco mais lógico – o que de algum modo equivale ao automático – me faz tentar criteriosamente o bom susto que me pegou:

De agora em diante, me referindo à Terra, não direi mais indiscriminadamente “o mundo”. “Mapa mundial”, considerarei expressão não apropriada; quando eu disser “o meu mundo”, me lembrarei com um susto de alegria que também meu mapa precisa ser refundido, e que ninguém me garante que, visto de fora, o meu mundo não seja azul. Considerações: antes do primeiro cosmonauta, estaria certo alguém dizer, referindo-se ao próprio nascimento, “vim ao mundo”. Mas só há pouco tempo nascemos para o mundo. Quase encabulados.

Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.

Se eu fosse o primeiro astronauta, minha alegria só se renovaria quando um segundo homem voltasse lá do mundo: pois também ele vira. Porque “ter visto” não é substituível por nenhuma descrição: ter visto só se compara a ter visto. Até um outro ser humano ter visto também, eu teria dentro de mim um grande silêncio, mesmo que falasse. Consideração: suponho a hipótese de alguém no mundo já ter visto Deus. E nunca ter dito uma palavra. Pois, se nenhum outro viu, é inútil dizer.

O grande favor do acaso: estarmos ainda vivos quando o grande mundo começou. Quanto ao que vem: precisamos fumar menos, cuidar mais de nós, para termos mais tempo e viver e ver um pouco mais; além de pedirmos pressa aos cientistas – pois nosso tempo pessoal urge.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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