Há
anos eu sonhava com uma visita a Nova York, ou qualquer outro lugar
do mundo, que coincidisse com uma exposição de Saul Steinberg.
Finalmente uma exposição de Saul Steinberg — em Porto Alegre.
Criança, não procure longe o que pode estar no seu jardim etc.
Parece que a exposição é só de reproduções — capas da New
Yorker, cartazes, coisas impressas —, mas não deixa de ser um
dos acontecimentos do ano. Saul Steinberg é um cartunista que cruzou
a barreira do preconceito e hoje é considerado um “artista”
sério no sentido de “respeitável”. E mais, é um dos artistas
mais importantes do século XX. Romeno, 65 anos, Steinberg mora nos
Estados Unidos, onde acabou, depois de uma carreira no exílio que
começou com um curso de arquitetura em Milão (ele disse para o
Time: “A maioria dos meus colegas foi para a arquitetura
como eu fui, como um disfarce ou um álibi”, podia estar falando de
Porto Alegre, hoje) e passou por Portugal, a República Dominicana e
até o Brasil. Na mesma entrevista para o Time, ele conta que
se formou Dottore in Architetura em 1940, sob o regime fascista. No
seu diploma, concedido em nome de Victor Emmanuel III, rei da Itália,
rei da Albânia e (graças a Mussolini) imperador da Etiópia, estava
escrito “Steinberg, Saul... di razza Ebraica”. Disse ele: “Era
uma espécie de precaução para o futuro, significando que embora
fosse ‘dottore’ podia ser impedido de praticar já que sou judeu.
A beleza disto para mim é que o diploma foi dado pelo rei, mas ele
não é mais rei da Itália. Não é mais rei da Albânia. Não é
sequer imperador da Etiópia. E eu não sou arquiteto. A única coisa
que resta é ‘razza Ebraica’!”.
Os
Estados Unidos tiveram sobre Steinberg o mesmo efeito que tiveram
sobre outros emigrados da cultura européia, como Nabokov. Repulsa e
fascinação, em doses iguais. O vazio da sua paisagem urbana, a
vulgaridade das suas matronas oxigenadas, o pseudo-rococó da
Califórnia (tudo é pseudo na Califórnia), a violência. E também
a vitalidade, a criatividade, a generosidade com a arte. Como Woody
Allen, outro colaborador constante da New Yorker, Steinberg é
um nova-iorquino arquetípico. Seu estilo preferido é a paródia,
que é a maneira que Nova York tem de se adonar da cultura dos
outros, ela que é a capital mundial da cultura e não tem cultura
própria, fora os grafites no subway . A paródia também é a
maneira de a sensibilidade europeia participar e ao mesmo tempo
manter sua distância da cultura pop. É uma das formas que
toma a autodepreciação do humor judeu. Steinberg (ainda citando o
Time) declara: “Deve-se ver muito do meu trabalho como uma
espécie de paródia do talento.” Um dos mais hábeis artistas
gráficos do mundo diz “eu quero criar uma ficção de habilidade”.
Muitos dos seus quadros são evocativos, de outros estilos, outras
técnicas. Ele gosta da caligrafia ultra-elaborada em que o excesso é
a sua própria paródia. A paródia também é, finalmente, a arte do
expatriado, o equivalente literário do exílio. Steinberg — que
falsificou seu passaporte para entrar nos Estados Unidos com um
carimbo que ele mesmo produziu — se delicia em imitar timbres e
rubricas oficiais, assinaturas ilegíveis, carimbos, toda a
ornamentação daquele trágico século do exílio, reduzido ao seu
puro encanto gráfico. Em muitas das suas paisagens, o sol é
substituído pela paródia de um carimbo.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os Deuses
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