A
mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os
gatos no scuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os
Milagres do padre Antônio em Urucánia. Desde aí, falava sempre,
excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de
cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?
Sofria
palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o
vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.
Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o
pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que
fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo
um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom’, danado de bom
pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e
vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia.
Foi água na fervura minha e do pai. Vivia repetindo que era graça
de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia
era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu
falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós. Tinha muito
medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras
sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente
viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra
ela e pros outros.
Quando
a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me
chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo,
coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de
chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que
Deus perdoe ela, Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de sair
do lugar.
Mas
a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe,
uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida.
Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação
da alma da Ricardina.
Era
a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada.
Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não
poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme
mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do
relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.
Rodeava
a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de
vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo
de laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis,
se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência
não te falta, o que falta é estudar, por exemplo falar você em vez
de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da
gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz
da mãe.
Achava
estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até,
pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta,
junto com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não
esqueci, pois ela insistia com gosto no título dele, em latim:
Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de
corrigir, porque toda vez que usava essa palavra, tava muito alegre,
feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo
serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado. Não
estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava.
Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi
aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.
Bom
também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antisardina
nº 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe
é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.
Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que
ela gostava demais.
Dia
ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi
três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca,
achando a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai
tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o
trem, de tanta raiva e mágoa. Mas sapato é sapato, pior foi com o
crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo,
trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de
pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou
e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz
simples, sem enfeite nenhum.
Morreu
sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando
com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim,
gente.
Fiquei
hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa, de
quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu,
Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da
senhora, parece que tá com raiva.
O
Senhor te abençoe e te guarde, Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça
de ti, O Senhor te dê a Paz.
Esta
é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela,
descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado. Era
raiva não. Era marca de dor.
Adélia
Prado, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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