domingo, 24 de maio de 2020

Parecendo uma rainha


Mariam adorava quando tinha visita na kolba. O arbab do vilarejo com seus presentes, Bibi jo com seus quadris doloridos e seus intermináveis mexericos, e, é claro, o mulá Faizullah. No entanto, não havia ninguém, mas ninguém mesmo, que ela gostasse mais de ver do que Jalil.
A ansiedade começava nas noites de terça-feira. Mariam dormia mal, com medo de que algum problema nos negócios pudesse impedir Jalil de aparecer na quinta, pois, se isso acontecesse, ela ficaria mais uma semana inteira sem vê-lo. Na quarta-feira, a menina ficava andando de um lado para o outro no quintal, atirando a comida das galinhas para dentro do cercado sem prestar a mínima atenção ao que fazia. Saía para passeios sem rumo, e ia apanhando pétalas de flores e espantando os mosquitos que pousavam em seus braços. Finalmente, na quinta-feira, tudo o que conseguia fazer era ficar sentada, recostada na parede, com os olhos pregados no riacho, esperando. Se Jalil se atrasava um pouco, um medo terrível ia se apossando dela aos pouquinhos, até que sentia as pernas bambas e tinha de ir se deitar em algum lugar.
Finalmente, Nana gritava:
Pronto, seu pai chegou. Em toda a sua glória...
Mariam se levantava de um salto assim que o avistava pulando sobre as pedras do riacho, todo sorrisos e acenos carinhosos. A menina sabia que Nana ficava de olho, espreitando cada reação sua, e ter de ficar parada ali, na porta, esperando, vendo-o se aproximar lentamente e não sair correndo ao seu encontro era algo que exigia um esforço considerável. Conseguia porém se conter e, com toda paciência, ficava observando Jalil atravessar o mato alto, com o paletó do terno pendurado no ombro e a brisa balançando a gravata vermelha.
Quando ele penetrava na clareira, atirava o paletó em cima do tandoor e abria os braços. Só então a menina se mexia, correndo enfim para ele a pegar por baixo dos braços e jogá-la para o alto. E Mariam gritava.
Lá de cima, via o rosto de Jalil ao contrário, o seu sorriso largo e meio retorcido, o seu bico-de-viúva, o furinho no queixo — perfeito para ela pôr a ponta do mindinho ali dentro —, e aqueles dentes tão brancos se destacando num mundo de molares cariados. Ela gostava daquele bigode caprichado e gostava também do fato de seu pai usar sempre o mesmo terno quando vinha visitá-la, fosse qual fosse o tempo que estivesse fazendo — um terno marrom-escuro, sua cor favorita, com o triângulo branco do lenço saindo do bolso do paletó —, além de abotoaduras e gravata, em geral vermelha, cujo nó ele afrouxava. Mariam também podia ver a si própria, refletida nos olhos castanhos de Jalil: o cabelo ondulado, o rosto radiante de empolgação e o céu às suas costas.
Nana dizia que, qualquer dia desses, Jalil ia errar e Mariam ia escorregar por entre os seus dedos, cair no chão e quebrar um osso. Mas a menina não acreditava que Jalil fosse deixá-la cair. Tinha certeza de que sempre voltaria ao chão, com toda segurança, pelas mãos limpas e bem tratadas de seu pai.
Sentavam-se no quintal da kolba, à sombra, e Nana lhes servia chá. Os dois se cumprimentavam com um sorriso constrangido e um aceno de cabeça. Jalil nunca mencionou as pedras que Nana atirava, nem seus xingamentos.
Embora resmungasse muito quando Jalil não estava por perto, Nana se mostrava contida e delicada quando ele vinha visitar a filha. Estava sempre de cabelo lavado, escovava os dentes e usava seu melhor hijab. Sentava-se numa cadeira defronte dele, calada, com as mãos cruzadas no colo. Não o olhava diretamente e nunca usava expressões grosseiras quando ele estava por perto. Se ria, tapava a boca com a mão para esconder os dentes estragados. Perguntava como iam os negócios.
Perguntava também por suas esposas. Quando ela lhe disse que tinha ficado sabendo, por Bibi 70, que Nargis, a esposa mais jovem, estava esperando o terceiro filho, Jalil sorriu polidamente e assentiu com um gesto.
Bom, você deve estar feliz — observou Nana. — Quantos são ao todo? Dez, não é? Mashallah!
São dez?
Jalil confirmou.
Onze, contando com Mariam, é claro! — acrescentou Nana.
Mais tarde, depois que ele já tinha ido embora, mãe e filha tiveram uma discussão por causa desse episódio. Mariam disse que ela tinha agido de má-fé.
Quando acabavam de tomar chá com Nana, Mariam e Jalil iam pescar no riacho. Ele lhe ensinou como lançar o anzol, como enrolar a linha para fisgar a truta. Ensinou-lhe ainda o jeito certo de abrir uma truta para limpá-la e separar a carne da espinha de uma só vez. Desenhava para a filha enquanto esperavam que algum peixe mordesse a isca, e lhe mostrou como fazer um elefante com um único traço, sem sequer tirar a caneta do papel. Também lhe ensinava cantigas. Juntos cantavam:

Bem no meio do caminho
Tinha um tanque de passarinho.
Com muita sede,
Dona carpa foi se chegando,
Mas escorregou na borda do tanque
E acabou afundando.

Jalil trazia recortes do I ttifaq-i Islam, o jornal de Herat, e lia as notícias para a filha. Ele era a sua ligação com o mundo lá fora, a prova de que havia muito mais coisas além da kolba, além de Gul Daman e até de Herat; havia um mundo com presidentes de nomes impronunciáveis, com trens, museus, futebol e foguetes que giravam pela órbita da Terra e aterrissavam na lua. Toda quinta-feira Jalil trazia consigo um pedacinho desse mundo para a kolba.
Foi ele quem lhe contou, no verão de 1973, quando Mariam estava com 14 anos, que o rei Zahir Shah, que havia governado o país por quarenta anos, tinha sido deposto por um golpe sem derramamento de sangue.
O primo do rei, Daoud Khan, articulou o golpe enquanto Zahir Shah estava na Itália, para tratamento de saúde. Você se lembra de Daoud Khan, não é? Já lhe falei a seu respeito. Era o primeiro-ministro quando você nasceu. Bom, seja como for, o Afeganistão deixou de ser uma monarquia, Mariam. Agora, é uma república, e Daoud Khan é o presidente. Dizem que os socialistas de Cabul o ajudaram a tomar o poder. Não que ele próprio seja socialista, veja bem, mas eles o ajudaram. Pelo menos, é o que andam dizendo por aí.
Mariam lhe perguntou o que era um socialista, e Jalil começou a lhe explicar, mas a menina mal prestou atenção ao que ele dizia.
Está me ouvindo?
Estou.
Jalil percebeu que ela tinha os olhos pregados no volume do bolso de seu paletó.
Ah, é claro — exclamou ele. — Bom, aqui está. Não vamos discutir por isso...
Pegou uma caixinha e entregou-a a filha. De vez em quando, trazia um presentinho para ela.
Certa feita, foi uma pulseira de cornalinas, outra, um colar com contas de lápis-lazúli. Nesse dia, ao abrir a caixa, Mariam viu um cordão com um pingente em forma de folha do qual pendiam moedinhas minúsculas com luas e estrelas gravadas.
Vamos lá, experimente, Mariam jo. A menina obedeceu.
O que acha? — indagou ela.
Você está parecendo uma rainha — respondeu Jalil, todo sorridente.
Depois que ele já tinha ido embora, Nana notou o pingente no pescoço da filha.
Isso é coisa dos nômades — exclamou. — Já os vi fazendo isso. Eles recolhem as moedas que as pessoas jogam fora e fazem bijuterias com elas. Quero só ver se o seu querido paizinho vai lhe trazer alguma coisa de ouro da próxima vez. Quero só ver...
Quando chegava a hora de Jalil ir embora, Mariam ficava parada na porta e o via se afastar pela clareira, infeliz com a ideia daquela semana inteira que, como algo imenso e irremediável, a separava da próxima visita de seu pai. Invariavelmente, prendia a respiração enquanto o via indo embora. Prendia a respiração e, mentalmente, contava os segundos, Fazia de conta que, para cada segundo que conseguisse ficar sem respirar, Deus lhe daria mais um dia com Jalil.
À noite, deitada na cama, ficava tentando imaginar como seria a casa dele em Herat. Tentava imaginar como seria morar ali, estar com ele diariamente. Podia até se ver estendendo-lhe a toalha quando ele acabasse de fazer a barba, avisando-o se por acaso se cortasse. Faria chá para ele. Pregaria os botões das suas roupas. Juntos, passeariam por Herat, passando pelas arcadas daquele bazar onde Jalil dizia que era possível encontrar qualquer coisa que se desejasse. Andariam de carro e, ao vê-los passar, as pessoas diriam: “Lá vai Jalil, com a filha.” Ele lhe mostraria a célebre árvore debaixo da qual o poeta está enterrado.
Logo, logo, decidiu Mariam, contaria tudo isso a Jalil. E, quando ele a ouvisse, quando compreendesse como ela sentia a sua falta, com certeza a levaria consigo. Ia levá-la para Herat, para morar em sua casa, exatamente como os seus outros filhos.
Khaled Hosseini, in A Cidade do Sol

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