quarta-feira, 20 de maio de 2020

O rei e o poeta

Era lei, era decreto, era folclore, fosse lá o que fosse, o fato é que naquele reino o rei, a rainha e os príncipes não defecavam. E ninguém podia duvidar do fenômeno, sob pena de ser enforcado.
Só eles, porém. Duques, arquiduques, condes, viscondes, marqueses e barões não gozavam de tal privilégio. Faziam cocô como toda gente.
E por que o rei e sua família se distinguiam nesse particular? O velho almanaque explicava: a parte da alimentação deles que normalmente se converteria em fezes transformava-se em sangue azul do mais fino. Sangue azul desse tipo, fidalgo nenhum poderia ter.
Um poeta vindo de região longínqua surgiu na praça fronteira ao palácio real e declarou alto e bom som que também não fazia necessidades. Sua comida virava poesia. E ofereceu-se para fazer a prova disto à vista de todos.
Inteirado, o rei ficou furibundo e ordenou que levassem à sua presença aquele plebeu atrevido. O poeta saudou cortesmente o monarca (era muito bem-educado), pediu um pedaço de pão, mastigou, engoliu e imediatamente compôs um soneto negando a existência de sangue azul. Dizia o verso final:
Azul, só mesmo o azul de Mallarmé.
Ao ouvir tal coisa, o rei, trêmulo de indignação, comeu três biscoitos e dispôs-se a perpetuar um triolé. Nenhum verso lhe fluía da boca, e sua dor de barriga era tão compulsiva que sua majestade teve de sair correndo em direção ao banheiro.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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