Era
lei, era decreto, era folclore, fosse lá o que fosse, o fato é que
naquele reino o rei, a rainha e os príncipes não defecavam. E
ninguém podia duvidar do fenômeno, sob pena de ser enforcado.
Só
eles, porém. Duques, arquiduques, condes, viscondes, marqueses e
barões não gozavam de tal privilégio. Faziam cocô como toda
gente.
E
por que o rei e sua família se distinguiam nesse particular? O velho
almanaque explicava: a parte da alimentação deles que normalmente
se converteria em fezes transformava-se em sangue azul do mais fino.
Sangue azul desse tipo, fidalgo nenhum poderia ter.
Um
poeta vindo de região longínqua surgiu na praça fronteira ao
palácio real e declarou alto e bom som que também não fazia
necessidades. Sua comida virava poesia. E ofereceu-se para fazer a
prova disto à vista de todos.
Inteirado,
o rei ficou furibundo e ordenou que levassem à sua presença aquele
plebeu atrevido. O poeta saudou cortesmente o monarca (era muito
bem-educado), pediu um pedaço de pão, mastigou, engoliu e
imediatamente compôs um soneto negando a existência de sangue azul.
Dizia o verso final:
Azul,
só mesmo o azul de Mallarmé.
Ao
ouvir tal coisa, o rei, trêmulo de indignação, comeu três
biscoitos e dispôs-se a perpetuar um triolé. Nenhum verso lhe fluía
da boca, e sua dor de barriga era tão compulsiva que sua majestade
teve de sair correndo em direção ao banheiro.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
Nenhum comentário:
Postar um comentário