Digo
tudo, disse! matar-e-morrer? Toleima. Nisso mesmo era que eu não
pensava. Descarecia. Era assim! eu ia indo, cumprindo ordens; tinha
de chegar num lugar, aperrar as armas; acontecia o seguinte, o que
viesse vinha; tudo não é sina? Nanja não queria me alembrar, de
nenhum, nenhuma. Com meia-légua andada, por um trilho. E preciso não
roçar forte nas ramagens, não partir galhos. Caminhar de noite, no
breu, se jura sabença! o que preza o chão ― o pé que adivinha. A
gente imagina uns buracões disformes. A gente espera vozes. Eh.
Pouquinhas estrelas dando céu; a noite barrava bruta. Digo ao
senhor! a noite é da morte? Nada pega significado, em certas horas.
Saiba o que eu mais pensei. No seguinte! como é que curiango canta.
Que o curiango canta é! Curí-angú!
A
obra de umas cem braças do riacho, o Hermógenes esbarrou.
Conchegamos. E com as mãos apalpávamos uns os outros. Dali em
diante, era junto a junto. O Hermógenes, puxando, enxergava por nós.
Que olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro qualquer coisa,
olhar assim, que nem o de suindara. Cada um com punhal a ponto,
atravessamos o córrego, pulando pelas alpondras; mais para baixo,
sabíamos de uma estiva, mas lá se temia que tivessem botado
sentinelas. Ali era o lugar pior! um estremecimento me desceu, senti
o espaço da minha nuca. Do escurão, tudo é mesmo possível. No
outro lado, o Hermógenes sussurrou ordens. Deitamos. Eu estava atrás
duma árvore, uma almêcega. Mais atrás de mim, o riacho, passante
por suas pedras. Naquela espera, carecíamos de persistir horas,
dando tempo. Assim, a água perto, os mosquitos vêm, eles acordam
com o cheiro da cara da gente, não concedem sossego. Acender cigarro
e pitar, não se podia. A noite é uma grande demora. Ah o que os
mosquitos infernizavam. Por isso mesmo, direi, era que o Hermógenes
tinha escolhido ali: que ninguém pegasse no sono, que a mosquitada
não deixava? Mas não seria de mim que pudesse ferrar no sono assim
perto daquele homem, príncipe das tantas maldades. O que eu queria
era que tudo sucedesse, mal ou bem aquela noite tivesse termo de
terminada. ― Tá aqui, toma... ― ouvi. Era o Hermógenes, um taco
de fumo me dando, que em forte cachaça ele tinha acabado de empapar.
Era para se esfregar na cara e nas mãos. Aceitei. Fosse coisa de
comer, não aceitava. Nada não disse, não agradeci. Aquilo era do
serviço de armas, fazia parte. E esfreguei, bem. Ao que os mosquitos
deixaram de me ferroar. Desde fiquei, pois então, me divertindo de
beliscar a casca da almêcega, aquela resina de ici-í. Daí, os
pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de
dar narração: retrato de pessoas diversas, ressalte de conversas
tolas, coisas em vago das viagens que eu tinha feito. A noite durava.
Haja
de contar o que foi ― o todo de se escorregar para cima a encosta ―
até ao ponto, donde a espera de tocaia devia de ser? Aquilo o igual,
sempre sendo. Um homem se arraiga em terra, no capim, no chão, e
vai, vai ― sendo serepente ― de gato-em-caça. Carece de repartir
frouxo o peso do corpo, semelhante fosse nadando; cotovêlo e joelho
é que transpõem. Tudo um ái de vagar, que chega aporreia, tem que
ser. Não vale arranco de pressa, o senhor tem de ficar o comprido
que pode, por mais de. As juntas da gente estalam, o senhor mesmo
escuta. Se coça a canela com o calcanhar; ― estando com polâina
não adianta. De cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha,
escuta. Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro
pousado em moita, que se assusta forte a voo, dá aviso ao inimigo.
Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos, no
mesmo lugar ― dão muito aviso. Aí quando é tempo de vagalume,
esses são mil demais, sobre toda a parte! a gente mal chega, eles
vão se esparramando de acender, na grama em redor é uma esteira de
luz de fogo verde que tudo alastra ― é o pior aviso. O que nós
estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só
mesmo em guerra é que se quer. O punhal travessado na boca, sabe?!
sem querer, a gente rosna. As guardas, qualquer mato ameaçava que ia
bulir! com o inimigo vindo dele. Arvores branquiçadas,
traiçoeiramente. A gente amassa com a barriga espinhos e gravetos, é
preciso de saber quando é que é melhor se calcar no estrepe firme
com gosto ― que é o que mais defende dele não se cravar. O
inimigo pode estar engatinhando também, versa por detrás, nunca se
tem certeza. O cheiro da terra agoura mal. Capim de beira em fio, que
corta a cara. E uns gafanhotos pulam, têm um estourinho, tlique, eu
figurava que era das estrelas remexidas, titique delas, caindo por
minhas costas. Trabalhos de unha. O capim escorria, do sereno da
noite, lagrimado. Ah, e cobra? Pensar que, num corisco de momento, se
pode premer mão numa rodilha grossa de cascavél, numa certa morte
dessas. Pior é a surucucú, que passeia longe, noturnazã, monstro!
essa é o que há com mais dôida ligeireza neste mundo. Rezei a
jaculatória de São Bento. A água do sereno me molhava, da macega,
das folhas, ― é o que digo ao senhor; me desgostava. Raio de um
repente, afastaram a erva alta, minha cabeça eu encolhi. Era um
tatú, que ia entrando no buraco, fungou e escutei o esfrego de suas
muxibas. Tatú-peba, e eu no rés dele. Que modo que? Rastejando de
minha banda da direita, o Hermógenes rompia, eu sentia o bafo duma
boca, e aquele avultar deitado de bicho duro, braço por braço. O
Garanço e o Montesclarense espigavam vez mais adiante, vez mais
atrás. Quando de sem-menos, o Hermógenes me esbarrou. Ele falou um
murmo ― me cochichou de mão em concha. ― E aqui mesmo... ― ele
redisse. Onde era que estavam as estrelas dianteiras, e os macios
pássaros da noite? ― pensei. Eu tinha fechado os olhos. O cheiro
dum araçá-branco formava bolas. Quietei.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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