domingo, 31 de maio de 2020

Hermógenes


Digo tudo, disse! matar-e-morrer? Toleima. Nisso mesmo era que eu não pensava. Descarecia. Era assim! eu ia indo, cumprindo ordens; tinha de chegar num lugar, aperrar as armas; acontecia o seguinte, o que viesse vinha; tudo não é sina? Nanja não queria me alembrar, de nenhum, nenhuma. Com meia-légua andada, por um trilho. E preciso não roçar forte nas ramagens, não partir galhos. Caminhar de noite, no breu, se jura sabença! o que preza o chão ― o pé que adivinha. A gente imagina uns buracões disformes. A gente espera vozes. Eh. Pouquinhas estrelas dando céu; a noite barrava bruta. Digo ao senhor! a noite é da morte? Nada pega significado, em certas horas. Saiba o que eu mais pensei. No seguinte! como é que curiango canta. Que o curiango canta é! Curí-angú!
A obra de umas cem braças do riacho, o Hermógenes esbarrou. Conchegamos. E com as mãos apalpávamos uns os outros. Dali em diante, era junto a junto. O Hermógenes, puxando, enxergava por nós. Que olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro qualquer coisa, olhar assim, que nem o de suindara. Cada um com punhal a ponto, atravessamos o córrego, pulando pelas alpondras; mais para baixo, sabíamos de uma estiva, mas lá se temia que tivessem botado sentinelas. Ali era o lugar pior! um estremecimento me desceu, senti o espaço da minha nuca. Do escurão, tudo é mesmo possível. No outro lado, o Hermógenes sussurrou ordens. Deitamos. Eu estava atrás duma árvore, uma almêcega. Mais atrás de mim, o riacho, passante por suas pedras. Naquela espera, carecíamos de persistir horas, dando tempo. Assim, a água perto, os mosquitos vêm, eles acordam com o cheiro da cara da gente, não concedem sossego. Acender cigarro e pitar, não se podia. A noite é uma grande demora. Ah o que os mosquitos infernizavam. Por isso mesmo, direi, era que o Hermógenes tinha escolhido ali: que ninguém pegasse no sono, que a mosquitada não deixava? Mas não seria de mim que pudesse ferrar no sono assim perto daquele homem, príncipe das tantas maldades. O que eu queria era que tudo sucedesse, mal ou bem aquela noite tivesse termo de terminada. ― Tá aqui, toma... ― ouvi. Era o Hermógenes, um taco de fumo me dando, que em forte cachaça ele tinha acabado de empapar. Era para se esfregar na cara e nas mãos. Aceitei. Fosse coisa de comer, não aceitava. Nada não disse, não agradeci. Aquilo era do serviço de armas, fazia parte. E esfreguei, bem. Ao que os mosquitos deixaram de me ferroar. Desde fiquei, pois então, me divertindo de beliscar a casca da almêcega, aquela resina de ici-í. Daí, os pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de dar narração: retrato de pessoas diversas, ressalte de conversas tolas, coisas em vago das viagens que eu tinha feito. A noite durava.
Haja de contar o que foi ― o todo de se escorregar para cima a encosta ― até ao ponto, donde a espera de tocaia devia de ser? Aquilo o igual, sempre sendo. Um homem se arraiga em terra, no capim, no chão, e vai, vai ― sendo serepente ― de gato-em-caça. Carece de repartir frouxo o peso do corpo, semelhante fosse nadando; cotovêlo e joelho é que transpõem. Tudo um ái de vagar, que chega aporreia, tem que ser. Não vale arranco de pressa, o senhor tem de ficar o comprido que pode, por mais de. As juntas da gente estalam, o senhor mesmo escuta. Se coça a canela com o calcanhar; ― estando com polâina não adianta. De cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha, escuta. Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro pousado em moita, que se assusta forte a voo, dá aviso ao inimigo. Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos, no mesmo lugar ― dão muito aviso. Aí quando é tempo de vagalume, esses são mil demais, sobre toda a parte! a gente mal chega, eles vão se esparramando de acender, na grama em redor é uma esteira de luz de fogo verde que tudo alastra ― é o pior aviso. O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só mesmo em guerra é que se quer. O punhal travessado na boca, sabe?! sem querer, a gente rosna. As guardas, qualquer mato ameaçava que ia bulir! com o inimigo vindo dele. Arvores branquiçadas, traiçoeiramente. A gente amassa com a barriga espinhos e gravetos, é preciso de saber quando é que é melhor se calcar no estrepe firme com gosto ― que é o que mais defende dele não se cravar. O inimigo pode estar engatinhando também, versa por detrás, nunca se tem certeza. O cheiro da terra agoura mal. Capim de beira em fio, que corta a cara. E uns gafanhotos pulam, têm um estourinho, tlique, eu figurava que era das estrelas remexidas, titique delas, caindo por minhas costas. Trabalhos de unha. O capim escorria, do sereno da noite, lagrimado. Ah, e cobra? Pensar que, num corisco de momento, se pode premer mão numa rodilha grossa de cascavél, numa certa morte dessas. Pior é a surucucú, que passeia longe, noturnazã, monstro! essa é o que há com mais dôida ligeireza neste mundo. Rezei a jaculatória de São Bento. A água do sereno me molhava, da macega, das folhas, ― é o que digo ao senhor; me desgostava. Raio de um repente, afastaram a erva alta, minha cabeça eu encolhi. Era um tatú, que ia entrando no buraco, fungou e escutei o esfrego de suas muxibas. Tatú-peba, e eu no rés dele. Que modo que? Rastejando de minha banda da direita, o Hermógenes rompia, eu sentia o bafo duma boca, e aquele avultar deitado de bicho duro, braço por braço. O Garanço e o Montesclarense espigavam vez mais adiante, vez mais atrás. Quando de sem-menos, o Hermógenes me esbarrou. Ele falou um murmo ― me cochichou de mão em concha. ― E aqui mesmo... ― ele redisse. Onde era que estavam as estrelas dianteiras, e os macios pássaros da noite? ― pensei. Eu tinha fechado os olhos. O cheiro dum araçá-branco formava bolas. Quietei.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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