sábado, 23 de maio de 2020

Dona Santinha

Ela é uma santa! — diziam as velhotas a propósito de Dona Santinha, sem atentar no engraçado da redundância, mas, em compensação, depois de uma piedosa pausa para suspirar — vá ronca no marido! Um grandessíssimo sem-vergonha, sempre atrás de um rabo de saia...
Já naquele tempo eu não entendia bem aquela santidade compulsória, só porque o marido era o diabo. Para mim, toda a santice dela estava nos doces que me dava sem mesquinheza, quando eu ia a recado à sua casa, visto que os fazia para vender.
Dona Santinha foi também o meu primeiro defunto. Fui lá por pura curiosidade, Deus me perdoe, porque ainda não tinha visto ninguém morto. Mas diga-se em meu abono que não sou um desses que vão espiar — para quê? — a cara de quem está indefeso. Não gosto de ver um morto “ao vivo”. E, nos velórios, sempre me deixo estar numa sala próxima, num corredor, na porta.
Porém, naquela minha estreia, lá estava eu sentadinho à cabeceira do caixão, calado, com receio de demorar muito o olhar naquele rosto gordo, sereno, tranquilo (Coitada! Descansou! — diziam de tempo em tempo as tias suspirosas) e admirando-me de que houvesse gente a cuidar de seus assuntos, até rindo baixinho. Flores e flores emurchecentes pareciam cobrir tudo. E eu sentia um cheiro que até então desconhecia. De súbito lembrei-me de certa frase de meu livro de leitura: “Morreu em odor de santidade.” Fiquei desconfiado. Teria a santidade um odor enjoativo? Talvez fosse das flores... No entanto, aquele cheiro era também adocicado. E pensei nos seus doces. Senti um engulho e uma lágrima. Saí porta fora e durante uma semana não quis saber de sobremesa, com grande espanto das velhas tias, que me sabiam guloso.
Ainda o sou. Mas, hoje, quando saboreio um quindim, um doce de coco, um figo cristalizado, sinto neles o gosto dos que me dava Dona Santinha, com aquele claro sorriso de mãe de todos. Que Deus a tenha! Acho que era mesmo uma santa…
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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