Ela
é uma santa! — diziam as velhotas a propósito de Dona Santinha,
sem atentar no engraçado da redundância, mas, em compensação,
depois de uma piedosa pausa para suspirar — vá ronca no marido! Um
grandessíssimo sem-vergonha, sempre atrás de um rabo de saia...
Já
naquele tempo eu não entendia bem aquela santidade compulsória, só
porque o marido era o diabo. Para mim, toda a santice dela estava nos
doces que me dava sem mesquinheza, quando eu ia a recado à sua casa,
visto que os fazia para vender.
Dona
Santinha foi também o meu primeiro defunto. Fui lá por pura
curiosidade, Deus me perdoe, porque ainda não tinha visto ninguém
morto. Mas diga-se em meu abono que não sou um desses que vão
espiar — para quê? — a cara de quem está indefeso. Não gosto
de ver um morto “ao vivo”. E, nos velórios, sempre me deixo
estar numa sala próxima, num corredor, na porta.
Porém,
naquela minha estreia, lá estava eu sentadinho à cabeceira do
caixão, calado, com receio de demorar muito o olhar naquele rosto
gordo, sereno, tranquilo (Coitada! Descansou! — diziam de tempo em
tempo as tias suspirosas) e admirando-me de que houvesse gente a
cuidar de seus assuntos, até rindo baixinho. Flores e flores
emurchecentes pareciam cobrir tudo. E eu sentia um cheiro que até
então desconhecia. De súbito lembrei-me de certa frase de meu livro
de leitura: “Morreu em odor de santidade.” Fiquei desconfiado.
Teria a santidade um odor enjoativo? Talvez fosse das flores... No
entanto, aquele cheiro era também adocicado. E pensei nos seus
doces. Senti um engulho e uma lágrima. Saí porta fora e durante uma
semana não quis saber de sobremesa, com grande espanto das velhas
tias, que me sabiam guloso.
Ainda
o sou. Mas, hoje, quando saboreio um quindim, um doce de coco, um
figo cristalizado, sinto neles o gosto dos que me dava Dona Santinha,
com aquele claro sorriso de mãe de todos. Que Deus a tenha! Acho que
era mesmo uma santa…
Mário
Quintana, in A vaca e o hipogrifo
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