Não
acredito em observação direta. Observação direta é reportagem —
o lamentável equívoco dos naturalistas. Flaubert descrevia o
vestuário de seus personagens — coisa que ao homem comum pouco
importa. Ponha o leitor a mão na consciência ou no olho e veja se
recorda hoje a cor do casaco da pessoa com quem falou ontem, ou no
caso de um primeiro encontro, se o homem usava óculos ou tinha um
bigodinho. Talvez eu esteja gabando minha deficiência. Confesso-me
tão mau observador que, um dia destes, tendo sido depositado
provisoriamente no quarto de banho do hotel um espelho de corpo
inteiro, este, a quem nada escapa, revelou-me que eu não tenho uma
coisa que todos têm, isto é: pelos nas axilas.
Ora,
como a minha linguagem não é uma abstração algébrica,
perguntarão como consigo escrever poemas, os quais, no seu estado
mais puro, em vez de se expressarem por associações de ideias,
expressam-se por imagens, figuras, coisas vistas... Mas foram vistas
subliminarmente e depois, na montagem do poema, exsurgem num mundo
mais real porque despojadas de acessórios insignificativos. Tanto
assim que, dentre as coisas que mais agradaram a este escriba, está
o testemunho de Donaldo Schüler: “M. Q. não cai nunca na
facilidade do descritivo.”
Ah,
as descrições! O que muito concorreu para o seu descrédito foi o
cinema. Para que “ler” uma cascata, agora que as podemos “ver”?
Também o cinema acabou com isso de abrir portas para entrar. Quando
a gente vê, o personagem já está lá dentro! Só nos filmes de
faroeste, por natureza tão primitivos, é que o herói monta no
cavalo e apeia do mesmo, como se não bastasse mostrá-lo em plena
cavalgada. E, como agora o substituto do cavalo é o automóvel, por
que raios temos ainda de ver o mocinho entrar no carro e depois
descer? Cavalo ou carro, o primitivismo é o mesmo. Mas eu estava
falando era na observação indireta, por sinal que há tempos o
título de um de meus futuros livros era O Viajante Adormecido. Só
não o utilizei pelo receio de que o chamassem O Leitor Adormecido.
Foi, como se vê, uma fraqueza que não me perdoo.
Mário
Quintana, in A vaca e o hipogrifo
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