Minhas
intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em
palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade.
De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a
transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de
chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem
ser através do processo de escrever. Se tomo um ar hermético, é
que não só o principal é não mentir o sentimento como porque
tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que o minta —
mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim,
tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem
chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente
torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado,
respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não
substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito
que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo
d’água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água
fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o
risco. Aceitei risco bem maior, como todo mundo que vive. E se aceito
o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou
arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco.
Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está
aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o
que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e,
de cambulhada, a escrever.
Clarice
Lispector,
in Crônicas
para jovens: de escrita e vida
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