quinta-feira, 21 de maio de 2020

A Baleia fóssil

Fóssil de baleia encontrada no deserto do Egito

Por sua massa incomensurável a baleia oferece um tema propício à expansão, à amplificação e às minudências em geral. Ainda que quisesse, a síntese não seria possível. Com justiça só se poderia abordá-la num fólio de proporções imperiais. Para não repetir suas braças do espiráculo à cauda, e tampouco as jardas de sua cintura; pense apenas nas gigantescas involuções de seus intestinos, que correm dentro dela como cabos e espias enrolados no bailéu subterrâneo de um navio de linha.
Visto que me incumbi de tratar desse Leviatã, coube a mim aceitar a onisciência exaustiva de tal tarefa; sem jamais fazer vistas grossas aos mínimos germes seminais de seu sangue, inquirindo-lhe a mais íntima dobra das vísceras. Já tendo descrito a maior parte de seus hábitos e peculiaridades anatômicas, resta agora exaltá-lo do ponto de vista arqueológico, fóssil, antediluviano. Aplicados a outra criatura que não o Leviatã – a uma formiga ou pulga –, tais termos portentosos poderiam ser com razão considerados de um exagero injustificável. Mas quando o assunto é o Leviatã o caso muda de figura. Muito me apraz cambalear de encontro a essa tarefa sob as palavras mais pesadas do dicionário. E que fique claro que, sempre que sua consulta se fez necessária ao longo destes tratados, invariavelmente usei uma enorme edição in-quarto de Johnson, adquirida exclusivamente para este fim; pois o extraordinário volume corpóreo do famoso lexicógrafo qualificou-o mais do que qualquer outro a compilar um léxico útil a um autor de baleias como eu.
Ouve-se amiúde falar de escritores que se elevam e se avolumam com seus temas, ainda que possam parecer comuns. Como sucederia, então, comigo, que escrevo sobre o Leviatã? Inconscientemente, minha caligrafia expande-se em letras garrafais. Deem-me uma pena de condor! Deem-me a cratera do Vesúvio por tinteiro! Amigos, segurem meus braços! Pois, no simples ato de escrever meus pensamentos sobre este Leviatã, eles me consomem e debilitam pela enorme abrangência de sua envergadura, como se incluíssem o conjunto total das ciências e todas as gerações de baleias, de homens e mastodontes, passadas, presentes e vindouras, com todos os panoramas movediços dos impérios terrestres, e através do universo inteiro, sem exclusão dos arrabaldes. Tamanha, e tão magnífica, é a virtude de um tema amplo e farto! Dilatamo-nos a seu volume. Para escrever um grande livro, é preciso escolher um grande tema. Não há obra grande e duradoura que possa ser escrita sobre a pulga, embora muitos já o tenham experimentado.
Antes de entrar no assunto das Baleias Fósseis, apresento minhas credenciais de geólogo, dizendo que, no decurso de minha vida agitada, fui pedreiro e também um grande cavador de valas, canais, poços, adegas, cavas e cisternas de todos os tipos. Do mesmo modo, à guisa de preliminar, é meu desejo lembrar ao leitor que, enquanto nas camadas geológicas mais antigas se encontram os fósseis dos monstros por ora quase completamente extintos; os restos descobertos nas chamadas formações Terciárias parecem constituir os elos, de algum modo interrompidos, entre as criaturas antecrônicas e aquelas por cuja descendência remota se afirmam ingressas na Arca; todas as Baleias Fósseis encontradas até agora pertencem ao período Terciário, o último precedente das formações superficiais. Embora nenhuma delas corresponda exatamente às espécies conhecidas no presente, são bastante semelhantes nos aspectos gerais para justificar sua classificação como fósseis de Cetáceos.
Fósseis esparsos e quebrados de baleias pré-adamitas, fragmentos de seus ossos e esqueletos, foram encontrados no decurso dos últimos trinta anos, em diferentes ocasiões, na base dos Alpes, na Lombardia, na França, na Inglaterra, na Escócia e nos Estados de Louisiana, Mississippi e Alabama. Entre os mais curiosos desses despojos há um pedaço de crânio que, no ano de 1779, foi desenterrado na Rua Dauphine, em Paris, uma rua pequena que desemboca quase diretamente no Palácio das Tulherias; e os ossos desenterrados nas escavações das grandes docas de Antuérpia, no tempo de Napoleão. Cuvier afirmou que esses fragmentos pertenceram a uma espécie Leviatânica desconhecida por completo.
Mas de longe a mais maravilhosa de todas as relíquias cetáceas foi o enorme esqueleto quase completo de um monstro extinto, encontrado no ano de 1842 na fazenda do Juiz Creagh, no Alabama. Os escravos das cercanias, crédulos e espantados, o tomaram pelos ossos de um dos anjos caídos. Os doutores do Alabama declararam-no réptil imenso e atribuíram-lhe o nome de Basilossauro. Mas alguns ossos atravessaram o mar para chegar a Owen, o Anatomista Inglês, e verificou-se que o réptil em litígio era uma baleia, embora de espécie perdida. Uma ilustração significativa do fato, várias vezes repetido neste livro, de que o esqueleto da baleia dá poucas pistas da forma de seu corpo inteiramente encarnado. Assim Owen trouxe mais uma vez ao seio da Cristandade o monstro Zeuglodonte; e, em palestra proferida à Sociedade Geológica de Londres, declarou tratar-se, em substância, de uma das mais extraordinárias criaturas cuja existência as mutações do globo já haviam suprimido.
Quando me encontro em meio a esses imensos esqueletos Leviatânicos, crânios, presas, mandíbulas, costelas e vértebras, todos caracterizados por semelhanças parciais com espécies existentes de monstros marinhos; mas ao mesmo tempo trazendo afinidades por outro lado similares com os Leviatãs antecrônicos extintos, seus antepassados mais do que longínquos; sinto-me, como que por uma inundação, arrastado para aquele período maravilhoso, anterior ao que se pode chamar de início dos tempos; pois o tempo começou com o homem. Aqui, o caos cinzento de Saturno rola sobre mim, e tenho visões trêmulas e sombrias dessas eternidades Polares; quando bastiões de gelo em cunha faziam pressão sobre o que são agora os Trópicos; e em todas as vinte e cinco mil milhas da circunferência deste mundo não se via um palmo de terra habitável. O mundo inteiro pertencia então ao Leviatã; e, rei da criação, ele deixou seu rastro de espuma ao longo das atuais linhas dos Andes e do Himalaia. Quem é capaz de ostentar uma linhagem como a do Leviatã? O arpão de Ahab derramou sangue mais antigo que o dos Faraós. Matusalém parece um menino de colégio. Olho à minha volta para dar um aperto de mão a Sem. O horror me acomete diante da existência antemosaica e sem origens dos terrores inomináveis da baleia, que, anteriores ao tempo, ainda existirão depois do fim das eras humanas.
Todavia, esse Leviatã não deixou vestígios pré-adâmicos apenas nas lâminas estereotipadas da natureza, tampouco a reprodução de seu busto antigo somente na pedra calcária e na marga; nas tabuletas Egípcias, cuja antiguidade parece reivindicar um caráter como que fóssil, encontramos a marca inequívoca de sua nadadeira. Numa câmara do grande templo de Denderah, há cinquenta anos, descobriu-se no granito do teto um planisfério esculpido e pintado, abundante em centauros, grifos e golfinhos similares às figuras grotescas da esfera celeste dos modernos. Deslizando entre eles, o velho Leviatã nadava como desde sempre; nadava ali naquele planisfério, séculos antes de Salomão ser colocado no berço.
Tampouco se deve omitir outro estranho testemunho da antiguidade da baleia em sua realidade óssea pós-diluviana, tal como registrado pelo venerável John Leo, o velho viajante da Barbaria.
Não longe da Costa, eles têm um Templo, as Vigas e Traves dele são feitas de Ossos de Baleias; pois Baleias de um tamanho monstruoso são amiúde arremessadas mortas naquelas praias. As Pessoas Simples imaginam que, graças a um Poder secreto conferido por Deus ao Templo, nenhuma Baleia pode passar diante dele sem de súbito morrer. No entanto, a verdade do Fato é que, de todos os lados do Templo, existem Rochas que se projetam por duas Milhas no Mar e ferem as Baleias quando passam por cima delas. Eles conservam uma Costela de Baleia de um comprimento impressionante como um Milagre, que, posta sobre o Solo com a parte convexa para cima, forma um Arco, cujo Topo não pode ser alcançado por um Homem montado no Dorso de um Camelo. Diz-se que essa Costela (diz John Leo) foi posta ali cem Anos antes de eu tê-la visto. Seus Historiadores afirmam que um Profeta que profetizou Maomé veio desse Templo, e outros não temem afirmar que o Profeta Jonas foi regurgitado pela Baleia diante da Base do Templo.”
Nesse Templo Africano da Baleia eu o deixo, leitor, e se for um nativo de Nantucket, e baleeiro, ali tomará parte do culto em silêncio.
Herman Melville, in Moby Dick

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